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    Torturadores condenados da ditadura argentina citam direitos violados

    LUCIANA DYNIEWICZ
    DE BUENOS AIRES

    29/08/2016 02h00

    Mais conhecidos por serem acusados de violar direitos humanos, militares e civis presos na Argentina por crimes contra a humanidade cometidos na última ditadura (1976-1983) dizem ser as atuais vítimas.

    Eles afirmam que seus direitos, principalmente o de prisão domiciliar para quem têm mais de 70 anos ou problemas de saúde, não são respeitados. Alegam que os julgamentos são parciais e que há casos em que o acusado fica mais de três anos em prisão preventiva, o que é ilegal.

    O assunto voltou a ser debatido nos últimos dias após a Justiça conceder prisão domiciliar a Miguel Etchecolatz, 87, ex-diretor de investigações da polícia de Buenos Aires.

    Etchecolatz, protagonista de um dos casos mais emblemáticos de processos contra responsáveis pela ditadura, é condenado a quatro prisões perpétuas por homicídio, tortura e privação de liberdade.

    No último dia 18, porém, o tribunal de La Plata decidiu que ele poderia cumprir a pena em casa, entendendo se tratar de questão humanitária por causa de sua idade.

    Inicialmente, o governo afirmou que respeitaria a decisão da Justiça. "Todos os detidos com mais de 70 anos podem receber prisão domiciliar, não apenas os repressores [da ditadura]. Não se trata de impunidade, mas de decisão que cabe ao juiz", afirmou à Folha, na última quarta-feira (24), o secretário de Direitos Humanos, Claudio Avruj.

    Um dia depois, porém, o governo admitiu que apresentaria um pedido para revogar a domiciliar por haver dúvidas em relação ao estado de saúde de Etchecolatz —que ainda não foi liberado.

    "Não há contradição [em relação à posição anterior]", informou a secretaria de Direitos Humanos.

    PRESSÃO

    Para o coronel aposentado Guillermo Viola, que dirige a organização Unión de Promociones (de defesa de condenados pela ditadura), o governo mudou sua postura por causa da pressão das associações de direitos humanos.

    Dados da Unión de Promociones apontam que 223 condenados por crimes de lesa-humanidade com mais de 70 anos estão em penitenciárias. "É uma população senil. Há gente que tem todo tipo de doença", diz o coronel.

    Laura Lescano/Xinhua
    Ativistas de direitos humanos protestam em Córdoba durante julgamento de ex-militares ligados a crimes durante ditadura na Argentina
    Ativistas protestam em Córdoba durante julgamento de militares ligados a crimes na ditadura

    O governo Macri, no entanto, tem dado espaço para reclamações dos militares concedendo audiências a eles. "Antes [no período kirchnerista, de 2003 a 2015], era como falar com as paredes."

    Foram os ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner que transformaram o julgamento dos responsáveis pela ditadura em política de Estado.

    Apesar de a gestão Macri dialogar com os militares, familiares de presos dizem não ter percebido mudanças mais radicais e que poucos juízes têm sido flexíveis. Desde que Macri chegou à Casa Rosada, em dezembro, foram concedidas 21 domiciliares —as outras são do período Kirchner.

    JULGAMENTOS PARCIAIS

    Familiares também afirmam que os julgamentos são parciais. Ana Barreiro, 67, cujo marido recebeu uma sentença de perpétua na semana passada, conta que a decisão saiu independente de o advogado de defesa, nomeado recentemente pelo Estado, haver dito que não teria condições de estar a par do processo a tempo.

    Barreiro entrou com uma ação na Comissão Interamericana de Direitos Humanos por violência institucional. Ela é investigada sob suspeita de ter sequestrado sua filha mais nova durante a ditadura. Apesar de um exame de DNA comprovar a maternidade, a Justiça argentina não o aceitou como prova.

    A estudante de direito Maria José López afirma que seu pai, um policial que também cumpre perpétua, ficou sete anos preso antes de ser julgado —quatro a mais que o permitido. "Não há provas de que ele tenha feito algo. Apenas testemunhos. Não peço para que ele seja liberado, mas que se cumpra a lei."

    Para Agustín Cetrangolo, da entidade de parentes de vítimas da ditadura Hijos, pessoas com 70 anos têm hoje condições de trabalhar e, por isso, deveriam permanecer presas. "A prisão domiciliar é constitucional, mas idade não é determinante de estado de saúde."

    BRASILEIRA

    Eneida Taffarel, 69, é a única brasileira em um grupo de argentinas que visita semanalmente o complexo penitenciário de Ezeiza, na Grande Buenos Aires. Seu marido, o coronel aposentado Carlos Alberto Taffarel, 69, está preso desde 2009 por ter cometido crimes contra a humanidade.

    O casal se conheceu em Uruguaiana, na divisa do Brasil com a Argentina, quando ele acabara de ingressar na carreira militar. Na década de 1970, Carlos trabalhou no serviço de inteligência do Exército e, em 2012, foi condenado à prisão perpétua por co-autoria de homicídios e privação ilegal de liberdade.

    Hoje, de acordo com Eneida, Carlos sofre de mal de Parkinson, o que não é suficiente para que tenha direito à prisão domiciliar.

    Arquivo pessoal
    A brasileira Eneida, 69, e o marido, Carlos Alberto Taffarel, 69
    A brasileira Eneida, 69, e o marido, o coronel aposentado Carlos Alberto Taffarel, 69, preso desde 2009

    Para Eneida, assim como para a maioria dos familiares de militares condenados, seu marido é um preso político que lutou contra "terroristas subversivos" em uma guerra, defendendo seu país.

    Em um grupo de três mulheres de militares, ela é a mais animada com o governo de Mauricio Macri. Acredita que a situação de Carlos pode ser revertida. Suas colegas, porém, acham que isso será difícil enquanto não houver mudanças mais radicais na Justiça, que consideram "viciada".

    No dia em que o marido foi preso, o casal estava em sua casa de campo na província de Entre Ríos quando chegaram 12 policiais. Eneida conta que foram para lá porque não queriam que os vizinhos o vissem sendo levado.

    Por ela ser brasileira, pediu informações ao governo do Brasil para saber se poderia conseguir asilo político. Aconselharam-na a solicitar uma entrada como refugiado.

    "Mas ele não quis. Nós fizemos tudo sem a vontade dele. Ele disse que tinha que cumprir com o que devia, que todos os colegas estavam na mesmas situação."

    Tentou que Carlos tirasse cidadania brasileira, mas ele recusou. "Falou: 'Eu não vou fugir. Eu sou um homem de honra e não vou fazer isso'."

    Eneida, que recebe pensão por Carlos ter sido militar, afirma ter se acostumado com a vida longe do marido, mas diz ter esperança de que ele volte para casa.

    Na Argentina, condenados à perpétua ficam detidos por no máximo 25 anos.

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