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    Após paz com as Farc, Colômbia quer avaliar total de mortos em conflito

    SYLVIA COLOMBO
    ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ

    29/08/2016 02h00

    Se no Cone Sul falar em números de vítimas e definir quem sofreu abusos de direitos humanos durante ditaduras que duraram de 7 a 21 anos já é motivo de uma polêmica incessante, imagine-se a dificuldade de estabelecer cifras num país em conflito há mais de 60 anos.

    A violência na Colômbia não nasceu com a guerra do governo contra as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), iniciada na década de 1960.

    Desde a morte do líder liberal Jorge Eliecér Gaitán, em 1948, que inaugurou um período chamado de "La Violencia", o país viu enfrentamentos entre o Estado e guerrilhas —M-19, Quintín Lame, ELN (Exército de Libertação Nacional), Farc—, entre estas e grupos paramilitares (alguns apoiados pelo Estado), e também a guerra do Exército e da polícia contra os cartéis do narcotráfico, como os de Medellín e Cali, nos anos 1980-90.

    Em muitos casos, as ações de grupos criminosos se misturaram com as das guerrilhas —movidas inicialmente por razões ideológicas, mas depois envolvendo-se em delitos como extorsão e narcotráfico.

    Divulgação
    Projeto do futuro prédio do Museu Nacional de Memória História, a ser construído no centro de Bogotá
    Projeto do futuro prédio do Museu Nacional de Memória Histórica, a ser construído no centro de Bogotá

    'TAREFA IMPOSSÍVEL'

    "Falar em cifras exatas ou dar nomes a todas as vítimas da violência política, ou da violência política vinculada ao crime, na Colômbia é uma tarefa quase impossível, mas fazemos um imenso esforço para estabelecer a verdade", diz à Folha Martha Nubia Bello, chefe de investigação do Centro Nacional de Memória Histórica, em seu escritório, em Bogotá.

    O órgão, que responde ao Poder Executivo, cumpre diversas funções. Por exemplo, investigar depoimentos de ex-guerrilheiros ou ex-paramilitares que fizeram acordos prévios com o governo para receberem benefícios.

    Seus testemunhos só valem se forem referendados pelo Centro, que cruza e verifica as informações recebidas.

    Essas investigações levam a equipe comandada por Bello às comunidades onde ocorreram os conflitos. Lá, contrapõem os testemunhos com fontes locais. "Usamos a imprensa, documentos do Judiciário local, relatos orais e arquivos da Igreja", conta.

    Divulgação
    Projeto do futuro Museu Nacional de Memória Histórica, que abrigará arquivos sobre o conflito na Colômbia
    Futuro prédio do Museu Nacional de Memória, que abrigará arquivos sobre o conflito na Colômbia

    Além dessa função, o Centro de Memória Histórica coordena a criação de museus regionais. Em Bogotá, está em construção o que deve ser o maior deles, a ser inaugurado em alguns anos —espera-se que com a paz com as Farc já consumada.

    O Museu Nacional de Memória Histórica estará no centro da capital e contou com assessoria do Instituto Smithsonian, dos EUA. Além de exposições e atividades, abrigará todo o Arquivo Nacional de Direitos Humanos do país.

    PROCESSO COM AS FARC

    No atual processo de paz, o Centro forneceu às equipes de negociação informes sobre o ocorrido nos 52 anos de embate. A ideia é que, agora, sirvam de apoio aos julgamentos.

    Bello explica que a definição de vítimas a quem podem ser concedidos benefícios engloba diferentes casos: parentes de mortos e desaparecidos, "desplazados" (pessoas obrigadas a deixar o local de origem devido à violência), vítimas de minas terrestres ou civis mortos em meio a tiroteios.

    "É um universo amplo e heterogêneo, e que contempla vítimas recentes com gente que sofreu danos há 20, 30 ou mais anos", explica.

    Bello esclarece que uma das grandes dificuldades é estabelecer quem é vítima com direito a benefícios quando os ataques sofridos misturam violência política com o crime organizado.

    "Em nome da guerra aos cartéis do narcotráfico, nos anos 80-90, o Exército matou insurgentes das guerrilhas, por exemplo. Por outro lado, as pessoas mortas pelo cartel de Medellín não foram vítimas de crime político e sim de crimes comuns, apesar de Pablo Escobar [líder da facção] ter mandado matar ministros e candidatos a presidente. É complicado, mas não queremos narcotizar a guerra, e sim tentar isolar, o máximo possível, o que foram abusos de direitos humanos e o que foram crimes comuns."

    Com o museu pronto, Bello diz que uma de suas preocupações será que os colombianos das cidades tenham uma ideia mais completa do que foi o conflito com as guerrilhas, essencialmente rural.

    "Tenho alunos na universidade que não têm ideia do que é a guerra, porque não os atinge, porque não a veem. E a Colômbia viveu um período de conflito dos mais longos e cruéis do mundo. É preciso que isso seja visível à população urbana", conclui.

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