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    depoimento

    Meu pai, que foi sequestrado pelas Farc, não assistiu ao fim da guerra

    ANNIE CORREAL
    DO "NEW YORK TIMES"

    30/08/2016 11h36

    A primeira pessoa para quem eu quis ligar quando ouvi que o governo da Colômbia e o maior grupo rebelde esquerdista do país haviam chegado a um acordo de paz na semana passada foi o meu pai.

    Em 1999, meu pai, Jaime Correal Martinz, foi sequestrado pelas Forças Armadas revolucionárias da Colômbia (Farc). Foi capturado por uma gangue em seu caminho do trabalho para casa, levado de carro às montanhas que cercam a capital Bogotá e entregue ao grupo rebelde, que o deteve por oito meses, pedindo resgate.

    Enquanto minha madrasta, Samantha, negociava com os rebeldes e cuidava dos meus irmãos mais novos, Nicolas e Lorena, em Bogotá, e eu concluía meu segundo ano de universidade nos Estados Unidos, meu pai era transferido de acampamento a acampamento, oculto pelo dossel da selva dos aviões militares que patrulhavam os ares acima. Ele dormiu em 38 lugares diferentes.

    John Vizcaino/Reuters
    Weapons are seen at a camp of the 51st Front of the Revolutionary Armed Forces of Colombia (FARC) in Cordillera Oriental, Colombia, August 16, 2016. Picture taken August 16, 2016. REUTERS/John Vizcaino ORG XMIT: JWV22
    Campo das Farc na Cordilheira Oriental, na Colômbia

    Sua seleção como vítima não aconteceu por motivo algum de especial. Naquele período, sequestros por dinheiro eram muito frequentes na Colômbia, uma das maneiras de os rebeldes financiarem sua insurgência, em companhia do tráfico de cocaína, e os sequestradores supunham que ele fosse rico.

    O que meu pai acharia do acordo de paz com os homens que o sequestraram? Enquanto ele estava em cativeiro, sua agência de viagens teve de fechar as portas. Perdemos tudo. E ainda assim tivemos sorte. O conflito de 52 anos envolvendo as forças armadas, as Farc e brutais grupos paramilitares de direita teria custado, pelo que se calcula, mais de 220 mil vidas, deixando 40 mil desaparecidos e cinco milhões de desabrigados.

    A notícia de que os rebeldes das Farc concordaram em abandonar permanentemente as armas, depois de quatro anos de negociação, debandando suas unidades e se integrando ao sistema político, é causa de celebração para algumas pessoas na Colômbia.

    Afinal, o país jamais esteve tão perto de encerrar seu conflito, a guerra mais longa no continente americano. A paz na Colômbia, um sonho fugaz para milhões de pessoas que marcharam por ela nas ruas do país, parece enfim estar ao alcance. O presidente Juan Manuel Santos definiu o acordo como "uma porta para um novo estágio em nossa história".

    No entanto, em 2 de outubro, quando os colombianos terão a palavra final sobre o acordo em um referendo, a decisão não será simples. Sob os termos do acordo, os combatentes das Farc receberão anistia por crimes como tráfico de drogas. Aqueles que confessarem crimes como sequestros e execuções estarão sujeitos a entre cinco e oito anos de restrições de movimento, mas não a sentenças de prisão.

    Durante o período de restrição, deverão realizar trabalhos sociais em comunidades afetadas pelo conflito. O acordo enfrenta oposição política significativa, e muitos colombianos estão furiosos.

    Após voltar para casa, meu pai raramente mencionava o tempo que passou como prisioneiro das Farc. Certa vez, no armazém, ele apontou para um pacote de bolachas salgadas. "Isso é o que nos davam para comer durante as marchas", disse ele. Em outra ocasião, me contou que botas de borracha serviam como um bom travesseiro, se você enfiasse uma na outra.

    Esses momentos ofereciam vislumbres de um mundo distante ao qual ele havia sido arrastado, e de sua persistência na memória dele. Em geral, e seguramente pelo nosso bem, ele tratava o sequestro com leveza, definindo-o como "meu desafio ecológico", e como férias muito necessárias.

    Uma década depois do ocorrido, ele me contou mais. Eu havia conseguido uma verba da Transom.org para fazer um documentário de rádio, e nos encontramos em Bogotá. (Uma versão do documentário foi veiculada posteriormente em "This American Life".) Sentado à mesa da cozinha de um amigo, rabiscando em um caderno e fumando, ele falou.

    Sim, ele foi alimentado, e recebeu até cigarros. Não, não era mantido agrilhoado. Mas ficou em confinamento solitário por seis meses em sua "caleta", ou barraca, onde passava as noites acordado pensando, ou ouvindo em segredo um programa de rádio que transmitia mensagens aos cativos.

    Também foi forçado a marchar durante dias por terrenos bastante difíceis. Uma vez, quando as forças armadas se estabeleceram em uma área controlada pelas Farc, ele caminhou por 11 dias sem parar, galgando um passo de montanha em meio a um temporal.

    Meu pai viu a complexidade do conflito de perto: a crueldade da qual as Farc eram capazes mas também o desamparo, se não inocência, de alguns dos jovens combatentes. Alguns dos guardas armados que o vigiavam tinham só 13 anos de idade. Muitos combatentes foram sequestrados em suas casas e forçados a aderir ao movimento quando crianças.

    Um desses combatentes teve um papel a desempenhar na libertação de meu pai. No 265º dia de cativeiro de meu pai, enquanto ele estava em um campo na companhia de diversos outros reféns, um tiroteio irrompeu do lado de fora das caletas. Era o Exército colombiano, atacando com cerca de 60 soldados.

    Eles dispararam metralhadoras, lançaram granadas. Quando o barulho parou, um soldado usando bandana se aproximou e disse: "Pessoal, vocês estão livres". Os rebeldes haviam fugido.

    Entre os soldados havia uma figura menor que as demais, usando uma máscara que lhe encobria o rosto. Depois da emboscada, ela tirou a máscara e meu pai a reconheceu. Era uma menina de cerca de 17 anos, combatente das Farc. Ele a havia visto lavando a louça no refeitório de um acampamento.

    Ela fugiu, sob risco de execução pelas Farc, e se entregou ao Exército. Se os soldados libertassem seu irmão de 13 anos de idade, que havia sido forçado a entrar para as Farc, ela conduziria as forças armadas aos cativos, entre os quais um prisioneiro importante, o jornalista Guillermo Cortés.

    Ela ajudou a libertar cinco reféns. Na época, era um dos maiores resgates na história da Colômbia. (Não está claro o que aconteceu à jovem, ou ao seu irmão.)

    Depois do resgate, minha família imediatamente se mudou para o Panamá, onde tínhamos raízes. Voltamos raramente à Colômbia, mas meu pai acompanhava as notícias. Nos anos que se seguiram, as Farc sofreram uma longa série de revezes no campo de batalha, que por fim conduziram a negociações de paz em Oslo, Noruega, e em Havana.

    Ao longo do processo de paz, meu pai manteve a esperança, mas também seu ceticismo quanto aos guerrilheiros. Será que o acordo fechado na semana passado é algo que ele, uma vítima das Farc, poderia endossar?

    Infelizmente, não pude ligar para perguntar. Meu pai morreu em junho, depois de uma série de derrames, aos 63 anos. O conflito sobreviveu a ele, por fim, mesmo que por apenas dois meses.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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