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    Onda de migrantes na Dinamarca deslancha tensões sobre identidade

    DAVID ZUCCHINO
    DO "NEW YORK TIMES", EM TAARNBY (DINAMARCA)

    07/09/2016 12h05

    Ilvy Njiokiktjien/The New York Times
    Participants during a Friday prayer in the Grand Mosque of Copenhagen, also known as Hamad Bin Khalifa Civilization Center, in Copenhagen, Denmark, Aug. 5, 2016. The thousands of Muslim asylum seekers pouring into Denmark have spawned a backlash, and questions over whether the country has a latent racial hostility at its core. (Ilvy Njiokiktjien/The New York Times)
    Grande Mesquita de Copenhague, também chamada de Centro de Civilização Hamad Bin Khalifa

    O bancário aposentado Johnny Christensen sempre se viu como alguém que é solidário com pessoas que fogem de guerras e que acolhe imigrantes. Mas, depois de mais de 36 mil candidatos a asilo, em sua maioria muçulmanos, terem entrado na Dinamarca nos últimos dois anos, Christensen, 65 anos, hoje diz: "Virei racista".

    Ele acha que os novos migrantes estão onerando o tão benquisto sistema de bem-estar social do país, mas não estão se adaptando aos usos e costumes dinamarqueses. "Precisamos chutá-los para fora", diz, dando um chute num alvo imaginário na calçada. "Esses muçulmanos querem conservar sua própria cultura, mas temos nossas próprias regras aqui, e todo o mundo tem que respeitá-las."

    País pequeno e ordeiro com autoimagem progressista, a Dinamarca foi erguida sobre um pacto social: em troca de alguns dos melhores salários e benefícios do mundo, as pessoas precisam trabalhar duro e pagar para conservar o sistema. Os recém-chegados ao país precisam aprender dinamarquês rapidamente e adaptar-se às normas sociais, como deixar seus jardins bem cuidados e andar de bicicleta.

    O país teve pouca experiência com imigrantes até 1967, quando os primeiros "trabalhadores hóspedes" foram convidados, vindos da Turquia, do Paquistão e da então Iugoslávia. Sua população de 5,7 milhões de habitantes continuou a ser de maioria avassaladora nascida no país, mas essa porcentagem caiu de 97% em 1980 para 88% hoje.

    Ilvy Njiokiktjien/The New York Times
    The Grand Mosque of Copenhagen, also known as Hamad Bin Khalifa Civilization Center, in Copenhagen, Denmark, Aug. 5, 2016. The thousands of Muslim asylum seekers pouring into Denmark have spawned a backlash, and questions over whether the country has a latent racial hostility at its core. (Ilvy Njiokiktjien/The New York Times)
    Grande Mesquita de Copenhague, também conhecida como Centro de Civilização Hamad Bin Khalifa

    O eminente historiador Bo Lidegaard disse que muitos dinamarqueses sentem fortemente que "hoje somos uma sociedade multiétnica, e precisamos aceitar esse fato –mas não somos e nunca devemos nos tornar uma sociedade multicultural".

    O fluxo recente de migrantes que chegaram ao país é pequeno em comparação ao 1 milhão de migrantes absorvidos pela Alemanha ou os 163 mil acolhidos pela Suécia no ano passado, mas, mesmo assim, foi um choque para este país estável e homogêneo.

    O governo de centro-direita apoiou a adoção de medidas rígidas voltadas aos migrantes, o discurso de ódio aumentou e hoje o anti-imigrante Partido do Povo Dinamarquês é o segundo maior no Parlamento.

    Um pouco dessa mesma hostilidade foi refletido no fim de semana na Alemanha, onde os eleitores do Estado da chanceler Angela Merkel apostaram em candidatos que são contra a imigração –assinalando uma rejeição enfática da política de Merkel de acolhida de refugiados.

    Existem novas tensões entre os dinamarqueses que ainda estão de braços abertos e a direita ressurgente que quer proibir a entrada de qualquer muçulmano e isolar a Dinamarca da Europa. Johnny Christensen, o bancário aposentado, defende propostas que estão surgindo para que seu país siga o exemplo do Reino Unido e saia da União Europeia.

    Não está claro se as reações negativas aos migrantes são realmente movidas pelo ônus para o generoso sistema de benefícios públicos dinamarquês ou pela ameaça terrorista crescente –ou, ainda, se está vindo à tona uma hostilidade racial latente, mas que existiria há muito tempo.

    Analistas dizem que o público manifestou pouca oposição quando 5.000 poloneses e 3.300 americanos, entre outros ocidentais, emigraram para a Dinamarca em 2014, mas que críticas fortes estão sendo feitas aos quase 16 mil candidatos sírios a asilo que chegaram naquele ano e no ano seguinte.

    Ilvy Njiokiktjien/The New York Times
    Housam Mohammed Shamden, a Syrian refugee, and his family, have dinner at the home of several members of the Kind Citizens group, who try to help immigrants settle, in Randers, Denmark, Aug. 6, 2016. The thousands of Muslim asylum seekers pouring into Denmark have spawned a backlash, and questions over whether the country has a latent racial hostility at its core. (Ilvy Njiokiktjien/The New York Times)
    O sírio Housam Shamden e sua família jantam na casa de membros de grupo que ajuda imigrantes

    Eles e outros migrantes não foram convidados, e muitos chegaram à Dinamarca por acaso, interceptados quando estavam a caminho da Suécia.

    Os críticos se queixam de que esses migrantes estão demorando a aprender o dinamarquês, apesar de o Ministério da Imigração ter informado recentemente que 72% deles passaram em um exame exigido do idioma.

    Alguns dinamarqueses se enfurecem com o que consideram ser enclaves étnicos: 30% dos novos imigrantes vivem nas duas maiores cidades do país, Aarhus e Copenhague, onde as mulheres muçulmanas, usando abaya, e os homens com barrete islâmico se destacam entre os dinamarqueses loiros e de olhos azuis nas ruas estreitas.

    Talvez a maior preocupação seja que os migrantes representam um ônus econômico ao país. Em 2014, 48% dos imigrantes de 16 a 64 anos vindos de países não ocidentais tinham emprego, comparados com 74% dos dinamarqueses natos.

    O Ministério da Imigração procura evitar o que descreve como "sociedades paralelas" de migrantes que vivem em "círculos viciosos de imagem negativa, problemas sociais e alto índice de desemprego". Em seu relatório mais recente, o Ministério disse que o endurecimento das exigências para a aceitação de imigrantes visa excluir "aqueles que têm capacidade menor de integrar-se à sociedade dinamarquesa".

    "NÃO É RACISMO TER CONSCIÊNCIA DA DIFERENÇA"

    A Dinamarca é apenas um entre muitos países europeus que estão enfrentando a onda de migrantes, em meio a uma onda de ataques terroristas em todo o continente lançados por extremistas islâmicos: uma pesquisa recente do Pew Research Center constatou que pelo menos metade dos cidadãos em oito de dez países pesquisados disseram que a onda de refugiados eleva a probabilidade de ataques terroristas.

    A confluência desses e outros fatores está levando a uma reavaliação da promessa de uma Europa unificada e sem fronteiras. Macedônia, Hungria e Eslovênia ergueram cercas em suas fronteiras. Em janeiro deste ano a Dinamarca impôs controles de identidade em sua fronteira com a Alemanha, algo que não existia antes, e, pela primeira vez desde 1958, a Suécia hoje requer que dinamarqueses que entram em seu território mostrem seus documentos de identidade.

    No ano passado a Dinamarca publicou anúncios em jornais de língua árabe destacando suas medidas novas e intransigentes. Essencialmente, os anúncios sugeriam: "Não venham para cá".

    Ilvy Njiokiktjien/The New York Times
    Sylvester Bbaale, who came to Denmark from Uganda as a baby in 1989, operates a food truck in Copenhagen, Denmark, Aug. 7, 2016. The thousands of Muslim asylum seekers pouring into Denmark have spawned a backlash, and questions over whether the country has a latent racial hostility at its core. Bbaale said he was beaten on the street last year by three men who told him to go back to Africa. (Ilvy Njiokiktjien/The New York Times)
    Sylvester Bbaale, que foi à Dinamarca desde Uganda ainda bebê, em 1989, trabalha em food truck

    Os muçulmanos não se assimilam tão facilmente quanto europeus ou alguns asiáticos, disse o ministro dinamarquês da Cultura, Bertel Haader, em parte porque, em suas palavras, a cultura patriarcal deles não vê com bons olhos que as mulheres trabalhem fora de casa, além de frequentemente limitar a liberdade de expressão.

    "Não é racismo ter consciência da diferença –seria burrice não ter consciência dela", disse Haarder. "Nós os beneficiamos ao sermos muitos inequívocos e francos em relação ao tipo de país para o qual vieram, em relação a quais são nossos valores básicos."

    "UMA DINAMARQUESA DE COR DIFERENTE"

    Sherif Sulaiman é cientista que estuda alimentos orgânicos e se mudou para a Dinamarca oito anos atrás, vindo do Egito. Ele disse que os muçulmanos não devem isolar-se em enclaves, mas abrir-se para a interação.

    Ele é o diretor de um centro islâmico inaugurado em 2014 e convida dinamarqueses ao centro para fazer refeições e para uma "semana de harmonia" anual. Sulaiman fez questão de que a mesquita do centro usasse móveis e um estilo arquitetônico escandinavos. Ele cede a sala de conferências do lugar a uma igreja para reuniões.

    "Precisamos ser como este vidro: transparentes", ele disse, apontando para uma janela. "Enquanto obedecermos as normas do país, faremos parte da sociedade dinamarquesa."

    Mas alguns imigrantes de pele escura que vivem na Dinamarca há décadas dizem que a assimilação parece ser uma meta difícil de alcançar e que sempre se modifica.

    Patricia Bandak e seu irmão, Sylvester Bbaale, vieram de Uganda para a Dinamarca em 1989, ainda bebês. Como seus vizinhos nascidos na Dinamarca, são corteses, pontuais e vão para todo lugar de bicicleta.

    Os irmãos não são muçulmanos, mas disseram que já foram alvos de racismo em muitos lugares: na escola, onde foram tachados de negros e ouviram que deviam parar de comer comida de Uganda, como a fruta matoke.

    Bbaale, que tem 27 anos e vende comida na rua, em sua caminhonete, contou que no ano passado foi espancado por três homens que o xingaram e lhe mandaram voltar para a África.

    "Muita gente acha que ser dinamarquês é algo que vem do sangue. Se for assim, nunca vou ser dinamarquesa", disse Bandak, que ganhou a cidadania dinamarquesa em 2010 e estuda cinema documental. "Digo que sou uma dinamarquesa de cor diferente."

    Tradução de CLARA ALLAIN

    Edição impressa
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