• Mundo

    Saturday, 04-May-2024 22:31:11 -03

    A ditadura de Franco está viva e passa bem na censura literária espanhola

    TOBIAS BUCK
    DO "FINANCIAL TIMES"

    28/09/2016 11h09

    Francisco Franco morreu há mais de quatro décadas, mas a censura imposta pelo ditador espanhol vive em dúzias de trabalhos de escritores como Ernest Hemingway, George Orwell, James Baldwin e Ian Fleming.

    De acordo com uma nova pesquisa, os clássicos modernos que foram censurados na época da ditadura ainda estão disponíveis na Espanha apenas na versão aprovada pelo regime de Franco.

    Em muitos casos, isso significa que aparecem sem referências à Guerra Civil Espanhola ou ao próprio Franco, e estão destituídos de frases e passagens consideradas sexualmente explícitas demais, críticas à Igreja ou imorais segundo os padrões do regime à época.

    Algumas traduções espanholas aparecem com páginas inteiras simplesmente cortadas em relação ao original. James Bond, o espião mulherengo que está no centro das histórias de Ian Fleming, sofreu de forma particularmente grave nas mãos dos censores de Franco. Muitas das suas gráficas aventuras sexuais –em livros como "O Satânico Dr. No" e "Chantagem Atômica"– ainda estão faltando na versão espanhola dos livros.

    No caso de "Na Outra Margem, entre as Árvores", de Hemingway, mesmo edições espanholas recentes incluem uma série de alterações feitas pelos censores. Uma referência a "lésbicas" no texto original é traduzida por "boas amigas" na edição espanhola atual de capa dura. Uma referência ao "General Gordão Ridículo Franco", no texto em inglês, aparece como o inespecífico "General Asno Gordo" na mais recente versão em brochura, de 2001. Linguagem grosseira e insultos a la Hemingway tais como "filho da puta" são amenizados ao longo do texto.

    "Esse é um legado do regime de Franco que, de certa forma, é invisível. Está aí, mas os leitores não sabem disso", disse Jordi Cornella, professor de Estudos Hispânicos na Universidade de Glasgow. "A censura desapareceu depois de Franco –mas não o efeito dos censores." Cornella notou pela primeira vez que as atuais edições espanholas continuavam sob restrições, com esses expurgos, enquanto analisava a tradução das novelas de Bond. "O último capítulo de 'O Satânico Dr. No' estava totalmente distorcido porque foram retiradas duas páginas com referências sexuais. Pensei que devia ser um erro, mas depois comecei a pesquisar e encontrei outros exemplos", ele disse. "O problema agora é que essas versões aparecem até em e-books, então é possível dizer que a censura está viva e passa bem na Espanha."

    Cornella afirma que até agora documentou casos de censura em dúzias de livros, em múltiplas edições pós-Franco, de "Dias na Birmânia", de George Orwell, e "Numa Terra Estranha", de James Baldwin, a "O Bebê de Rosemary", de Ira Levin. Trabalhos de John Dos Passos, Muriel Spark e Dashiell Hammett também foram afetados. De acordo com Cornella, os editores muitas vezes não sabem que seus livros estão comprometidos.

    Uma porta-voz da Planeta, que publicou a maioria das edições recentes de "Na Outra Margem, entre as Árvores", disse que o grupo não estava ciente das mudanças da censura na época da publicação e acrescentou que já não possuíam direitos do trabalho. "Com essa nova informação, qualquer editor que se preze adorará lançar uma nova versão", ela disse, e acrescentou que a Planeta havia lançado recentemente novas versões livres de censura de trabalhos de escritores como Carlos Fuentes e Juan Marsé.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024