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    eleições nos eua

    Separados por grade na divisa México-EUA, parentes se falam como na cadeia

    ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
    ENVIADA ESPECIAL A SAN DIEGO (CALIFÓRNIA)

    28/10/2016 02h00

    "Regras para o Círculo da Amizade: 1) Não passe NADA pela cerca (ex: dinheiro, comida, documento)."

    Assim começa a pouco amistosa lista com normas para frequentar um perímetro específico do parque binacional cortado por uma barreira de ferro que divide as cidades de San Diego (EUA) e Tijuana (México).

    No lado mexicano, vai quem quer e quando quiser. No americano, a Patrulha da Fronteira vigia todos que entram e saem, o que só é permitido das 10h às 14h de sábados e domingos.

    Mexicanos nos EUA recorrem a este espaço restrito do Parque da Amizade para falar com amigos e parentes sem visto para visitá-los. Como muitos estão no país de forma ilegal, temem ir à terra natal e serem barrados na volta.

    O que sobra para Jannet Castanon, 37, é isso: conversar com a mãe, a costureira Rosário Vargas, 57, sobre a diabetes dela através de uma cerca cheia de buraquinhos, sob a vigilância de um guarda que se lambuza com protetor solar a poucos metros das duas.

    A comunicação remete à entre um presidiário e sua visita, e a imagem do outro aparece pontilhada.

    Num sábado de outubro, além da família de Jannet e da carcaça de um pássaro morto, há apenas um mexicano, que estendeu uma cadeira de praia e se municiou de cigarros, Doritos e Gatorade vermelho para passar horas conversando com uma amiga de Tijuana.

    Em dez anos, Jannet e Rosário só se abraçaram uma vez. Aconteceu em 2015, após uma campanha vitoriosa para que os patrulheiros abrissem temporariamente um portão no tal Círculo da Amizade.

    Tiveram três minutos numa espécie de minijaula. "Nunca mais quis soltá-la", diz Rosário, que hoje transmite calor humano (isso ainda não é proibido) à Ivete, 10, caçula dos três netos, passando seu dedo por uma das fendas miúdas da cerca.

    Jannet tinha 27 anos quando pisou pela última vez em Tijuana, agora a centímetros de distância. Não via futuro lá. "Não gosto do meu país, ele não nos dá nada", diz a funcionária de uma universidade de San Diego, citando a violência e a falta de trabalho como o pior do México.

    O presidenciável Donald Trump defende crescer em tamanho e potência o muro que já cobre 33% dos 3.200 km de cercas na borda sul dos EUA —parte foi erguida no governo George W. Bush, com votos a favor dos então senadores Barack Obama e Hillary Clinton.

    Quase metade dos imigrantes ilegais, contudo, chegou ao país por um dos 48 pontos oficiais de entrada na fronteira ou por avião. Jannet, por exemplo, pagou US$ 3.000 por identidade falsa e vaga no carro de uma "garota de olhos azuis" que passou sem sufoco pela segurança.

    O que vai nem sempre volta. Para deixar os EUA, nada se pede. Para retornar, a repórter e o fotógrafo da Folha tiveram de mostrar documentos e responder o que faziam no México.

    Do lado de Tijuana, o trânsito na fronteira (200 metros em uma hora) é o ganha-pão de dezenas de ambulantes com a cabeça equilibrando pilhas dos bonés que vendem —oferta-se ainda do quadro da santa ceia à bolsa com a figura da personagem Peppa Pig costurada no bordado colorido tipicamente indígena.

    "Não há ameaça física e econômica maior para americanos hoje do que nossa fronteira aberta", declarou em nota o Conselho Nacional da Polícia da Fronteira ao defender um presidente Trump, "antes que seja tarde demais".

    PEDRAS

    James Nielsen, 32, é um dos 16,5 mil agentes representados pelo grupo. O jovem de Chicago se juntou à corporação após os ataques do 11 de Setembro, por temer a entrada de terroristas pelas brechas no limite sul do país.

    O que Nielsen acha: não, nem todos que vêm são uma Jannet, e sim, há "hombres maus" à espreita, como Trump ressaltou num debate. "Essas pessoas Não sabemos quem são."

    Em sua jurisdição, uma das mais violentas, a média de ataques a guardas é de 35 ao ano, diz o patrulheiro de San Diego. "Às vezes jogam pedras. E não são pedrinhas, não. São do tamanho de um punho."

    Ele já deteve imigrantes de todas as idades, em geral com mochilas cheias de água, latas de atum e feijão e tortilla, para aguentar a travessia de dias sob sol pesado. Certa vez, encontrou filmes pornô e camisinha na bolsa de um rapaz. Descobriu que ele já fora deportado dos EUA, após condenação por pedofilia. "Nessas horas me sinto muito bem pelo meu trabalho."

    Trump estreou na política afirmando que o México envia "drogas, crime, estupradores —e alguns [imigrantes], presumo, são boa gente".

    A ideia de que um muro protegeria os EUA contra quem de fato não tem a melhor das intenções é questionável. Traficantes, por exemplo, costumam despachar drogas para o país vizinho por meio de túneis ou catapultas que arremessam a mercadoria.

    "E não somos todos más pessoas como Trump diz", afirma Jannet, que entre o 4 de Julho (independência americana) e o Dia de los Muertos (tradicional feriado mexicano) prefere mesmo o Dia de la Madre.

    Editoria de arte/Folhapress
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