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    OPINIÃO

    Tal como está, proposta de diálogo na Venezuela dará em nada

    PETER HAKIM
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    29/10/2016 02h00

    Pouco depois de o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, se reunir com o papa Francisco, na semana passado, foi anunciado que o governo e a oposição tinham concordado em participar de um diálogo longamente buscado para procurar uma solução para a crise crescente da República Bolivariana.

    Sem um trabalho mais adequado de preparo, porém, é possível que o diálogo proposto, patrocinado pela Unasul e o Vaticano e previsto para começar nos próximos dias, acabe por fazer mais mal do que bem.

    Pode levar o governo autocrático venezuelano a se enraizar mais solidamente, fraturar e enfraquecer ainda mais a oposição já tolhida e deixar os problemas da Venezuela sem solução.

    Os governos insensatos, arbitrários e frequentemente incompetentes de Hugo Chávez (1999-2013) e do seu sucessor são os principais culpados pela situação da Venezuela: uma economia prestes a quebrar, um impasse político volátil, instituições democráticas sufocadas e uma escassez desesperadora de alimentos.

    Mas o derretimento venezuelano também reflete o fato de uma América Latina fragmentada não ter conseguido mobilizar qualquer resposta cooperativa à crise da Venezuela. As muitas instituições regionais criadas com o intuito de unificar a América Latina parecem há anos estar quase indiferentes à tragédia na Venezuela.

    Na primeira década do governo de Chávez, a economia, enriquecida pelos preços altíssimos do petróleo, cresceu rápido; os gastos sociais se multiplicaram, e a pobreza e desigualdade recuaram.

    A Venezuela teve recursos suficientes para ajudar a financiar Cuba e outros aliados ideológicos; o país foi um importante mercado de exportações e fonte crucial de recursos para muitos países.

    Chávez ganhou eleição após eleição e exerceu um papel cada vez mais influente nos assuntos regionais. Os governos latino-americanos –alguns deles aliados políticos da Venezuela, outros beneficiários de sua generosidade, todos conscientes das bravatas políticas de Chávez– relutavam em criticar seu governo ditatorial.

    Apesar de todas as nações latino-americanas terem assumido formalmente o compromisso de adotar ações coletivas para corrigir violações da democracia, as crescentes violações dos direitos humanos e da ordem democrática na Venezuela foram ignoradas. Pouco ou nada foi dito sobre a extrema centralização do poder no país, sobre o amordaçamento e encarceramento de opositores e as restrições impostas às instituições cívicas.

    CRISE

    A queda do mercado petrolífero, seguida pela morte de Chávez, em 2013, deixou a distorcida economia venezuelana em frangalhos e a política no país perigosamente polarizada e instável.

    Com a inflação mais alta do mundo, e sem ter condições de pagar por suas importações, o país hoje sofre uma crise humanitária prolongada, com escassez ampla de produtos de primeira necessidade, infraestrutura deteriorada e o colapso dos serviços públicos. O apoio popular a Maduro vem diminuindo em ritmo acelerado. Mesmo assim, a coalizão opositora, apesar de ser maioria no Congresso, vem sendo politicamente marginalizada por um governo repressor que controla tribunais e órgãos eleitorais.

    Desfizeram-se as perspectivas de um referendo revogatório este ano, o que poderia ter permitido a realização de novas eleições presidenciais. O regime chavista está determinado a se conservar no poder até 2019, e, possivelmente, depois disso.

    Os venezuelanos não conseguem resolver sozinhos o impasse –e conter um desastre político e econômico iminente que causaria danos regionais imensos. No entanto, até agora, as nações latino-americanas –e as instituições regionais como a OEA e a Unasul– têm feito pouco mais do que falar sobre a necessidade de um diálogo entre o governo e a oposição, algo que nenhum dos lados parece preparado para buscar seriamente.

    Sim, o secretário-geral da OEA condenou insistentemente as violações democráticas e dos direitos humanos cometidas pelo governo venezuelano e pediu ação regional para restaurar a ordem constitucional e conseguir a libertação de prisioneiros políticos. Mas suas propostas vêm recebendo pouca atenção por parte dos países membros.

    Na semana passada, finalmente, um grupo considerável de países latino-americanos –dez ao todo– uniu-se aos EUA e Canadá para criticar o governo venezuelano por bloquear o referendo.

    Mas a maioria desses países também endossa o mal preparado diálogo patrocinado pela Unasul e o Vaticano, apesar de ele ser rejeitado pela maioria dos líderes opositores venezuelanos e, do modo como está, ser fortemente enviesado em favor do governo. Um diálogo que começa dessa maneira –sem qualquer concordância prévia em relação a normas e procedimentos, com um lado sentindo que sua pauta foi ignorada, enquanto o outro confia que conseguirá controlar o resultado– tem toda a probabilidade de não dar em nada. As nações da América Latina e o Vaticano podem fazer melhor que isso.
     
    p(tagline). PETER HAKIM é presidente emérito do Inter-American Dialogue.

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