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    Papel lusófono na ONU deve evoluir com Guterres, diz premiê português

    MATHIAS DE ALENCASTRO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    03/11/2016 02h00

    Portugal vive um novo momento no cenário da diplomacia global desde a escolha do ex-premiê António Guterres como secretário-geral da ONU, em outubro. Diante disso, o atual premiê, o socialista António Costa, diz esperar que os países de língua portuguesa tenham nova voz dentro das Nações Unidas, incluindo o cobiçado assento permanente no Conselho de Segurança para o Brasil.

    Costa, 55, falou à Folha em Brasília, durante a 11ª cúpula da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), realizada nos dias 31 e 1º. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

    Pedro Ladeira/Folhapress
     BRASILIA, DF, BRASIL, 01-11-2016, 18h00: Entrevista exclusiva com o primeiro ministro de Portugal Antônio Costa, no Lobby do hotel Royal Tulip, onde a comitiva está hospedada. (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, MUNDO) ***ESPECIAL*** ***EXCLUSIVO***
    O premiê de Portugal, António Costa, durante entrevista à Folha, em Brasília

    Folha - Qual o significado da chegada de António Guterres ao cargo de secretário-geral da ONU para Portugal e os países de língua portuguesa?
    António Costa - É a primeira vez que a ONU terá um secretário-geral de língua portuguesa, e a segunda que terá um ibero-americano. Significa o reconhecimento da grande qualidade pessoal do engenheiro Guterres e o seu esforço pela promoção da paz, dos direitos humanos e da igualdade de gênero demonstrada no Alto Comissariado dos Refugiados (Acnur) e no governo português. Significa também que o espaço da CPLP e ibero-americano tem grande capacidade de articulação a nível global. Portugal não é só um pequeno país na Europa. A partilha da União Europeia, do espaço ibero-americano e da lusofonia oferece uma capacidade de projeção completamente distinta. A nossa longa história de abertura global faz com que sejamos um dos únicos países europeus onde os partidos xenófobos não têm nenhum tipo de manifestação. Agora esperamos que a posição dos países de língua portuguesa evolua dentro das Nações Unidas. Por exemplo, que o português seja admitido como língua de trabalho e que o Brasil seja admitido [como membro permanente] no Conselho de Segurança.

    Com Guterres, aumentam as chances de reforma do Conselho de Segurança?
    Todo o processo de seleção de Guterres demonstrou vontade de reforma por parte da ONU. Os candidatos se submeteram a um processo de escrutínio da sociedade global de grande transparência e abertura.
    Esperamos que a ONU continue o esforço nessa direção e passe a espelhar a realidade do mundo de hoje, que não é a do pós-guerra.

    Como caracteriza as relações de Portugal com o governo brasileiro?
    Excelentes. Vemos como um sinal positivo o presidente Michel Temer marcar esta cúpula bilateral que não se realizava havia mais de três anos, receber a cimeira da CPLP e e assumir a presidência in tempore da instituição logo depois de assumir o poder. Indica um novo impulso ao compromisso do Brasil na lusofonia.

    O sr. vê mudança na orientação da diplomacia brasileira?
    Não diria uma nova orientação política, mas uma nova atenção do Brasil ao espaço da CPLP. As relações econômicas entre Brasil e Portugal estão em muito bom nível, mas podem ir muito mais longe. O Brasil e só o décimo mercado para nós. Podemos ter um nível de relacionamento econômico que não se limita à exportação de petróleo, carne e azeite. Símbolo de novo patamar é o [avião da Embraer] KC 390. Parte das peças é produzida em Portugal e montada no Brasil. Outro símbolo é o novo projeto carro elétrico, desenvolvido pelo centro de engenharia e industria automóvel de Portugal em cooperação com a Universidade [Federal] de Minas Gerais. Temos condições para que o possamos desenvolver em conjunto para o mercado do Mercosul e da União Europeia. Virará a pagina do nosso relacionamento se concretizado duradouramente.

    O presidente Temer declarou que o ajuste fiscal brasileiro deveria servir de exemplo para outros países da CPLP. Citou a PEC 241, que impõe um teto de gastos públicos. Essa medida faria sentido em Portugal?
    No quadro da zona do euro, Portugal tem regras próprias relativas à disciplina orçamentária. Este ano, vai cumprir pela primeira vez o que estava previsto no Tratado [ sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação da União Europeia], a meta de deficit de 2,5% do PIB.
    Uma curiosa ironia é, que depois de quatro anos de a direita ter conduzido uma política de austeridade, tenha sido preciso virar essa página para finalmente cumprirmos o deficit orçamentário.
    Isso demonstra a importância de saber combinar disciplina e rigor orçamentário com uma política que permite repor os rendimentos das famílias, criar condições para o investimento e gerar emprego digno de qualidade. Ser de esquerda não quer dizer defender deficits.

    A social-democracia brasileira atravessa crise semelhante à da Europa. A esquerda portuguesa é exceção. Acha que o exemplo de Portugal pode inspirar outros partidos sociais-democratas, na Europa e no Brasil?
    Cada país tem o seu próprio contexto e a sua própria história. A social-democracia portuguesa passou por uma crise e está agora a sair dela. Porventura, a brasileira está agora a entrar numa crise e há de sair. Mas a globalização colocou desafios que a social-democracia não tem sido capaz de compreender. Há uma agenda clara que não passa pelo regresso ao protecionismo, mas por globalizar o que deve ser globalizado. Há propostas comuns que a social-democracia deve assumir na escala global, como o combate a alterações climáticas, redução das desigualdades, o desenvolvimento da cultura e da educação.

    Portugal defende a livre circulação de pessoas dentro dos países da CPLP. As disparidades entre os países-membros não dificulta a realização desse objetivo?
    A história tem demonstrado que, consoante o ciclo econômico, os nossos fluxos migratórios vão e vêm. Nós não devemos temer isso. Umas vezes são uns, umas vezes são outros. Ao longo dos próximos anos haverá sempre alguém a atravessar o Atlântico. Temos de ver isso como uma vantagem, e não como um problema, e criarmos condições para que isso decorra de forma natural. Durante anos, Portugal dificultou a entrada de dentistas brasileiros. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário. Os dentistas brasileiros revolucionaram a saúde oral em Portugal. Graças a eles sabemos que ir ao dentista não é uma tortura da Idade Média, mas apenas um tratamento. O Brasil também não ganhou nada quando dificultou a entrada de engenheiros portugueses. Temos de garantir liberdade de residência, reconhecimento de diplomas e portabilidade de diretos sociais. A aposentadoria no Brasil tem de contabilizar direitos formados em Portugal, e vice-versa. Se criarmos condições para que isso aconteça, a CPLP passará da excelência no campo político e econômico para a excelência no dia a dia da vida dos cidadãos.

    Como essa ideia da livre circulação é vista pela UE, cujos governos seguem tendência oposta de restrição a imigrantes?
    Não temos acompanhado os países europeus que acham que a solução aos problemas de segurança está no fechamento das fronteiras. Há uma diferença importante: a UE tem uma política única de vistos de entrada. Mas a competência de acordar autorização de residência cabe a cada Estado-membro. Podemos acordar com a CPLP regras de liberdade de residência. E quem tem residência não precisa de visto para entrar em Portugal.

    O Ministro das Relações Exteriores Português, Augusto Santos Silva, declarou que a presença da Guiné Equatorial na CPLP é ilegítima se a pena de morte no país não for abolida. A partir de agora, podemos esperar mais da CPLP nas questões de direitos humanos?
    O respeito pelos direitos humanos é um componente fundador e basilar da CPLP. A admissão da Guiné Equatorial foi condicionada a uma série de requisitos, entre elas a abolição da pena de morte. A Guiné Equatorial impôs uma moratória e, nesta cúpula, pediu apoio técnico para agilizar a abolição total e irreversível da pena de morte.

    Houve alguma resistência da parte dos portugueses ao acordo ortográfico. Existe uma rivalidade sobre o domínio da língua nos países da CPLP?
    Portugal ratificou o acordo ortográfico, depois de uma grande polêmica e debate. Pessoalmente sempre fui defensor do acordo, porque as línguas não são estáticas, tal como a cultura. Não é o primeiro acordo ortográfico e não há de ser a última vez.
    Portugal é o berço da língua portuguesa, mas a língua não é exclusiva de Portugal. É partilhada por 260 milhões de pessoas e deve ser vivida na diversidade.

    MATHIAS DE ALENCASTRO é doutor em Ciência Política na Universidade de Oxford

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