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    Cristãos temem voltar a cidade livre do Estado Islâmico no Iraque

    YAN BOECHAT
    COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE BARTELLA (IRAQUE)

    05/11/2016 02h00

    Os estrondos secos e graves das bombas que os jatos americanos despejavam sobre Mossul na manhã da última quarta-feira (2) não chegaram a assustar a aposentada Bashia Salam Shaba, 70.

    A cada explosão ela virava o olhar em direção a Mossul e repetia: "Só volto para cá quando o Estado Islâmico estiver destruído e expulso do Iraque. Não tenho medo das bombas, mas do Daesh [acrônimo árabe do EI]".

    Bashia Shaba, de cabelos arruivados que aparenta ter menos que seus 70 anos, havia chegado pouco antes de os caças iniciarem os ataques para fazer sua primeira visita em quase dois anos e meio a Bartella, uma cidade predominantemente cristã distante menos de 15 km de Mossul.

    Bashia e boa parte das cerca de 30 mil pessoas que viviam na cidade fugiram na madrugada de 6 de agosto de 2014 com alguns pertences pessoais, horas antes de os militantes do EI chegarem em uma onda devastadora.

    Bartella faz parte de um conjunto de cidades e vilas que compõem o maior e mais antigo enclave cristão no Norte do Iraque e permanecia dominada pelo EI até a semana passada, quando foi retomada pelas forças especiais iraquianas. Só agora, Bashia e antigos moradores têm conseguido autorização para visitar a cidade, hoje completamente abandonada.

    Editoria de arte/Folhapress

    "Viemos ver como está nossa casa, como estão as casas dos nosso vizinhos", conta. "Mas não há mais nada, está tudo destruído, nem conseguimos entrar em casa", disse ela, com um crucifixo pendurado no pescoço, enquanto os caças mais uma vez sobrevoavam a cidade preparando-se para mais uma leva de ataques às posições do Estado Islâmico em Mossul.

    DESTRUIÇÃO

    Mesmo com as forças iraquianas avançando de forma gradual pelos bairros da periferia leste de Mossul, Bartella continua uma vila fantasma. Está parcialmente destruída pela batalha feroz da última semana, quando militantes do EI optaram por lutar até o último homem e enviaram mais de 15 carros-bomba e homens suicidas contra militares iraquianos.

    Quase todas as casas, lojas e prédios que margeiam a estrada que liga a cidade a Mossul foram atingidos por bombas, disparos de grosso calibre ou morteiros e granadas disparados por carros de combate das forças especiais.

    "Um dos atiradores de elite que matamos aqui estava sem comida e sem água, apenas com munição e com um soro ligado à veia para se manter hidratado", conta o tenente Haidar Tasha, das forças especiais iraquianas, que participou da batalha e agora faz parte do pelotão que controla a cidade. "Eles sabiam que não podiam vencer e não estavam preocupados com isso; queriam fazer o maior número de vítimas e atrasar nosso avanço".

    Nos prédios que permanecem intactos, poucos se arriscam a entrar: os militantes do EI espalharam explosivos por toda a cidade. São artefatos simples, que parecem inofensivos. Cartas de baralho, brinquedos infantis, garrafas de água, munições intactas, tudo serve como detonador para os explosivos plantados pelos militantes. Até agora as forças iraquianas fizeram a limpeza de alguns poucos prédios e das principais ruas.

    "Não pude entrar na minha casa, não era seguro", diz Hasina Hasan, 54, que como Bashia voltou a Bartella pela primeira vez em quase dois anos e meio. "Só vimos que ela está queimada e que eles retiraram as cruzes da igreja", conta ele, segurando um telefone cuja capa de proteção é a imagem de cristo.

    "Também queimaram nossas bíblias, todos os livros que estavam na igreja, mas ela se mantém de pé e vamos voltar aqui para reconstruir tudo, sempre fizemos isso."

    INCERTEZA

    Esta não é a primeira vez que os cristãos de Bartella enfrentam perseguição, morte e destruição. A cidade foi convertida ao cristianismo em torno do ano 200 e, ao longo dos séculos, tem sido alvo de ataques de curdos, persas e muçulmanos. Localizada na planície do Nineveh, Bartella integra o maior enclave cristão assírio nesta área hoje dominada por muçulmanos, em sua maioria, sunitas.

    A cidade conta com cinco igrejas –quase todas parcialmente destruídas pelo EI.

    Até a chegada da facção terrorista, mais de 100 mil cristãos viviam na região. Hoje, todos estão refugiados nas redondezas de Irbil, a capital do Curdistão, aguardando a chance de voltar para casa.

    Bashia ainda não sabe se voltará a viver em sua antiga casa. "Ela está destruída, mas esse não é o problema. Nós vamos construí-la de novo", diz a aposentada. "Meu medo é que o Daesh volte. Quem garante que eles não vão voltar? Há dois anos, eles chegaram aqui em poucos dias."

    Apesar de sua família estar disposta a deixar Irbil e voltar para a cidade o mais breve possível, Bashia diz que não quer viver ali até que Mossul tenha sido totalmente retomada dos militantes.

    "Já éramos perseguidos antes por sermos cristãos, mas agora foi diferente e só com a expulsão deles de Mossul tenho coragem de voltar para Bartella", diz a mulher, enquanto o estrondo de mais uma bomba se faz ouvir.

    "Se Deus quiser, eles vão conseguir acabar com todos eles", afirma Bashia, apontando para a estrada que leva para Mossul.

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