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    Depoimento

    Meninos, Eu não vi

    MICHAEL KEPP
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    09/11/2016 16h24

    Brendan McDermid-16.jun.2016/Reuters
    Família do presidente eleito Donald Trump

    Meninos, eu não vi que Donald Trump chegaria à Casa Branca. Hoje essa cegueira, causada por minha falta de perspicácia política, me deixou constrangido. Mas, o que é muito pior, a eleição de Trump me deixou envergonhado –de ser americano.

    Digo a mim mesmo que eu não deveria sentir essa vergonha, porque o trumpismo não é um fenômeno apenas americano, mas parte de uma onda de populismo xenófobo que agora também percorre a Europa. Mas isso não ajuda.

    Sim, compreendo que Trump representa a revolta eleitoral de milhões de americanos brancos, da classe trabalhadora e da zona rural, os mais duramente atingidos pela crescente disparidade de renda, que temiam que os imigrantes estivessem contribuindo para seus problemas econômicos. Mas, mesmo assim, subestimei o número deles que enxergaria um demagogo racista e misógino como a resposta.

    Sim, alguns partidários de Trump votaram nele apesar de ele ser quem é, mas muitos outros votaram nele por ele ser quem é. E, sim, posso perdoar as mulheres brancas, de classe trabalhadora, a maioria das quais votou em Trump, não em Hillary Clinton –não obstante a misoginia que ele escancarou na gravação em que se gabou de suas agressões sexuais– mais facilmente que seus maridos, que fizeram dele seu porta-voz. Mas isso não apaga minha vergonha.

    Essa vergonha me força a enxergar mais de metade do eleitorado que votou em Trump sob uma ótica muito mais depreciativa. E, com isso, me sinto muito desligado de "meu povo e minha pátria". A eleição de Ronald Reagan, em 1980, ajuda a explicar por que fugi para o Brasil dois anos depois. Mas não me provocou nem de longe tanto sentimento de estar culturalmente alienado de meu país.

    Assim, "meninos", imaginem como me sinto agora. Sim, é em parte verdade que Trump ganhou porque Hillary era uma candidata com falhas e não carismática. Mas isso não explica o movimento que Trump iniciou e que mobilizou seus partidários enraivecidos com um entusiasmo que nunca vi na política americana. Foi esse entusiasmo, mais que qualquer outra coisa, que lhe valeu à Presidência dos EUA.

    Quase nenhum dos pesquisadores e analistas políticos –quase todos os quais previram a vitória de Hillary– avaliou corretamente as dimensões desse entusiasmo. Eles, os 16 republicanos que Trump derrotou nas primárias, Hillary Clinton, a equipe dela e eu, todos subestimamos a profundidade desse sentimento.

    O que os americanos precisam fazer agora é não subestimar os estragos que Trump vai causar quando estiver na Casa Branca. Em vez de recitar a lista dos horrores que ele pode infligir aos EUA e ao mundo, prefiro estar mais alerta aos perigos que ele acarreta.

    Talvez essa vigilância me ajude a esquecer minha vergonha –uma emoção improdutiva. Mas o que vai mitigar a desconexão cultural que hoje sinto em relação ao meu povo e minha pátria?

    Michael Kepp, jornalista americano radicado há 33 anos no Brasil, é autor do livro "Um pé em cada país" (Tomo Editorial).

    Tradução de Clara Allain

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