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    Opinião

    Resultado apocalíptico escancara essência de um país de extremos

    ARIEL DORFMAN
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    13/11/2016 02h00

    Ao eleger Donald Trump, um predador ignorante, mentiroso e valentão, um racista que odeia e teme os latinos, os muçulmanos e as mulheres, um homem que não acredita que o planeta esteja em perigo de extinção por razões climáticas e que vai aumentar a agonia e a desventura dos habitantes mais necessitados do seu país e do mundo inteiro, a América revelou seu verdadeiro ser.

    Estou, como tantos norte-americanos e tantos mais no mundo, pasmo, indignado.

    E, porém, se olhar no espelho e no espelhismo da minha vida, não deveria eu sentir nenhuma surpresa frente a esse desenlace apocalíptico.

    Quando, com minha mulher e nossa família, chegamos aos Estados Unidos em 1980, não abrigávamos ilusões sobre o país que, no fim das contas, havia promovido o golpe militar de 1973 contra o presidente democraticamente eleito do Chile.

    Sabíamos que esta América, suas Forças Armadas e seu próprio povo eram cúmplices de crimes contra a humanidade em todos os continentes. Nem ignorávamos como eram maltratadas minorias étnicas, nem sua longa história de escravidão e perseguição dos dissidentes.

    Apesar de tudo isso, tinha eu também razões para agradecer esta América e admirá-la. Minha família argentina já havia encontrado refúgio antes, em 1945. Quando criança, crescendo na prodigiosa cidade de Nova York nos exuberantes anos 50, havia me apaixonado pelo país que me deu sua língua e sua música e sua literatura, as maravilhas que continuam a me nutrir.

    E que extraordinário esse experimento social e político, a busca de uma nação mais perfeita, a história de resistência à intolerância e ao racismo entre seus cidadãos mais iluminados, a generosidade sem fim com que esta terra recebeu tantas comunidades estrangeiras e com que aceitou tantos grupos religiosos.

    Uma terra que questionava suas próprias falhas e limitações. A terra de Dylan e Franklin Roosevelt, de Meryl Streep e Walt Whitman, de Ella Fitzgerald e William Faulkner e Martin Luther King. Como não ceder ao encanto de um país que declarou, ao ser fundado, que os humanos não só tínhamos direito à vida e à liberdade, mas também a buscar a felicidade?

    Passei a maior parte da minha vida híbrida e dupla tentando reconciliar essas duas Américas, uma que reprime ferozmente nossa humanidade e a outra que exige que essa humanidade floresça. Essa reconciliação tão difícil e precária se sustentava na aposta de que algum dia prevaleceria a América dos anjos invocada pelo meu herói Abraham Lincoln.

    Minha crença na redenção deste país onde me fiz cidadão, com minha esposa e os filhos de ambos, seria colocada à prova várias vezes durante 36 anos. Havia, certamente, algo de esquizofrênico nesse constante ir e vir entre o espanto e a esperança.

    O espanto não faltou durante estas décadas. Tivemos que padecer os anos de Reagan, cheios de avareza e malevolência, e protestar contra as intervenções em países soberanos. E o mais desanimador, ver com frequência como o Partido Democrata se mostrava excessivamente conformado com o poder e com o militarismo patrioteiro.

    Mas também não me abandonou a esperança. Fui me aferrando a qualquer indício que me permitia celebrar a luta dos seus habitantes contra a desigualdade, cada marca de progresso, cada ato colossal ou mínimo de resistência.

    É esse meu perpétuo e delicado ato de equilíbrio –e de tantos outros aqui– que acaba de desmoronar, talvez para sempre.

    Não é meu desejo demonizar os milhões que deram a Trump a sua vitória. Demonstrei uma empatia obstinada com as hostes que apoiavam o homem que vai suceder Obama. Sem desculpar as manifestações mais extremas de racismo e ódio que impulsionavam aquelas multidões, fui tentando compreender as raízes da sua ira, como seu ressentimento nascia de uma tentativa de defender uma identidade assaltada e ferida.

    Mas percebo agora que tal tolerância só era permissível porque eu pensava que Trump não podia ganhar, que esse desenlace era impossível.

    Agora que Trump abriu uma porta pela qual penetrou e se exibiu tudo o que é horrível na sua América, me resta reconhecer que o que contemplo é talvez o rosto verdadeiro deste país, assustador e permanente. O rosto que, desde criança, tentei negar. E agora, depois do que essa campanha desprezível expôs sobre parte tão imensa do povo norte-americano, suspeito que será impossível reparar a brecha nessa comunidade.

    Como seguir em frente, carregando esse veneno infinito que me contamina, como aceitar o que tantos inocentes vão sofrer?

    Tentei me consolar com palavras de Rasheed, um negro com quem conversei no dia da eleição, tentando estimular a votar quem ainda não havia feito isso. Esse homem radiante intuiu meu desassossego com o possível triunfo de Trump.

    "É preciso ter fé", disse. "Nós cometemos erros, mas nosso povo, no final, nas coisas grandes, 'in the big things', nas coisas que importam, não nos equivocamos."

    Palavras que continuam ressoando em mim, mas que não aliviam meu pesar.

    Disse incredulidade, estupefação, indignação?

    Sim, sinto isso, mas algo mais, algo muito mais profundo e duradouro.

    Estou de luto. De luto por um país que, para mim, acaba de morrer, que morreu quando meus cegos concidadãos, elegeram como seu líder Donald Trump, misógino e mentiroso e vil.

    ARIEL DORFMAN é escritor e dramaturgo chileno radicado nos EUA, autor de "A Cidade em Chamas" (Rocco), entre outros

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