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    Invasão de venezuelanos fugindo de crise no país gera caos em Roraima

    MARCELO TOLEDO
    EDUARDO KNAPP
    ENVIADOS ESPECIAIS A PACARAIMA (RR)

    20/11/2016 02h00

    Aos 28, Enrique Rafael Díaz tem uma vida muito diferente da planejada. Estudante de medicina na Venezuela, trocou a sala de aula nos últimos meses por um semáforo em Boa Vista (RR), onde passa até 15 horas por dia vendendo frutas, artesanato e lavando vidros de carros.

    Já são 30 mil, segundo o governo do Estado, os venezuelanos que nos últimos seis meses deixaram seu país com a crise de abastecimento e cruzaram a fronteira com o Brasil, inundando cidades como Pacaraima, porta de entrada dos estrangeiros do país vizinho, e Boa Vista.

    Roraima tem cerca de 500 mil habitantes e trata o caso como crise humanitária.

    Com isso, o Estado viu crescerem atendimentos hospitalares, violência, casos de malária e prostituição. Venezuelanos dormem nas ruas, na rodoviária e em imóveis invadidos, num cenário que se agrava a cada dia, já que, em média, cem estrangeiros entram no Estado diariamente.

    "Estou tentando só uma vida melhor. Não há comida lá. Tentei ajudar numa construção e ainda machuquei a mão", afirmou Díaz.

    Ele é um dos venezuelanos que inflaram os atendimentos de saúde no Estado. Em Pacaraima, cidade de 12 mil habitantes que vive um caos, já foram feitos 3.200 atendimentos a pacientes do país.

    No pronto-socorro de Boa Vista, onde Enrique foi atendido, foram 544. Outras 478 mulheres passaram pela maternidade da capital.

    O impacto é sentido também na educação, que viu quadruplicar os estudantes venezuelanos matriculados.

    Locais de grande movimento, como os principais cruzamentos da capital e a rodoviária, convivem com cheiro de urina e fezes espalhadas. Restos de comida também integram o cenário, assim como medo de assaltos.

    Os registros policiais envolvendo venezuelanos passaram de 58 no Estado, no ano passado, para 220 neste ano.

    AGRESSÕES

    Na Feira do Passarão, 160 venezuelanos, a maioria indígena da etnia Warao, têm, diariamente, sido alvos de agressões de brasileiros.

    A xenofobia, aliás, já é algo perceptível nas ruas, tanto por brasileiros quanto por venezuelanos. "Eles não deveriam estar aqui. Estou desempregado há seis meses e alguns deles têm conseguido emprego. Que voltem para o país deles", disse o pedreiro Ramon da Silva, de Pacaraima, sobre 80 indígenas estrangeiros que vivem num terreno vizinho ao terminal rodoviário da cidade.

    Num outro semáforo, o brasileiro Daniel da Silva, 41, que vende garrafas de água, disse tolerar a presença de estrangeiros, desde que não atrapalhem seu comércio. "Podem até ficar, desde que fiquem quietos, na deles, e não insistam em tentar vender água. Já tentaram, mas não deixo."

    A cozinheira venezuelana Josepina Alfara disse que nunca quis sair de seu país, mas se viu obrigada e espera a compreensão dos brasileiros.

    "Meu pais é tão rico, tem diamante e petróleo, manda energia elétrica para Roraima e vive uma crise terrível com esse presidente [Nicolás Maduro]. Não quero ficar aqui para sempre, mas vejo muitos brasileiros virarem a cara para a gente. Todos somos criaturas de Deus."

    A decisão da Justiça venezuelana de proibir o Parlamento de fazer um julgamento sobre a responsabilidade de Maduro na crise do país frustrou ainda mais a esperança dos estrangeiros que cruzaram a fronteira.

    "Se ele não sair, talvez a gente só volte daqui a uns cinco anos –se voltarmos–, quando acabar o mandato dele", disse Glerdy Pérez, 40, que está em Boa Vista com uma filha de 21 anos vendendo morango nas ruas.

    FACILIDADE

    Embora haja fiscalização na fronteira entre os países, a entrada no Brasil é facilitada por ser seca e a divisa territorial ser feita apenas com marcos pintados de branco, que não impedem o ingresso de nenhuma pessoa a Pacaraima.

    A cidade vive um cenário de filme pós-guerra, com muito lixo amontoado nas ruas, trânsito bagunçado no centro comercial e venezuelanos chegando a todo instante para comprar comida e revender em cidades como Santa Elena de Uairén, a primeira do lado venezuelano. A procura é tão intensa que até farmácias e lojas de roupas estão vendendo arroz, açúcar, macarrão e óleo. Tudo inflacionado.

    "É preciso um esforço para mantê-los de alguma forma na Venezuela. Pacaraima terá de ser refundada, de tão caótica que está", disse Juliano Torquato (PRB), prefeito eleito da cidade.

    No posto de fiscalização da cidade, a maioria dos estrangeiros (quase 70%) afirmam que entrarão no Brasil para turismo. Mas 10%, em média, dizem que já moram ou morarão em solo brasileiro.

    "Vivem com muita dificuldade, buscando até comida no lixo na Venezuela ou em feiras livres. Sabemos que muitos alegam fazer turismo por medo de serem barrados, mas isso cabe à PF. Nosso papel é ter um censo de quem entra", disse Silvana dos Santos, sargento da Defesa Civil e membro do gabinete de crise criado pelo Estado.

    Editoria de arte/Folhapress
    Pacaraima

    A cidade é, também, a porta de entrada das venezuelanas para a prostituição em solo brasileiro. É o caso de Alessandra A., 24, que passou por Pacaraima e vive em Boa Vista há um mês.

    "Quero ficar aqui, porque a situação lá deve piorar. A vida é cara aqui, mas um programa pode render até R$ 100, valor que ganharia um mês inteiro trabalhando lá", disse.

    Sua amiga Naica C., 29, afirmou que consegue enviar dinheiro para a família e pensa em trazê-la para o Brasil. "Na Venezuela temos de pagar os preservativos, enquanto aqui a gente ganha nos postos de saúde e temos bom atendimento médico", disse.

    No total, cerca de 150 venezuelanas estão nas ruas próximas à Feira do Passarão se prostituindo. A movimentação é ininterrupta. A Folha encontrou cerca de 30 garotas de programa no local às 10h da última quarta-feira (16).

    Algumas, como a própria Naica, já foram alvo de roubos e agressões. No último final de semana, ela foi jogada ao chão por um ladrão, que levou o dinheiro ganho no dia e celular. "Não levou minha esperança. No geral, somos tratadas bem, sem grosseria."

    Eduardo Knapp/Folhapress
    Venezuelanas aguardam clientes em bairro de Boa Vista; cada programa custa entre R$ 70 e $ 100
    Venezuelanas aguardam clientes em bairro de Boa Vista; cada programa custa entre R$ 70 e $ 100
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