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    a morte de fidel

    Aos 16 anos, tive um memorável 'quase-encontro' com Fidel Castro

    EMILIO LEZAMA
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    28/11/2016 02h00

    Como se algo tivesse faltado ao ano: Fidel Castro morreu na sexta-feira (25). Nas ruas de Miami, muitos cubanos abriram champanhe; em muitos outros pontos do mundo, os moderados acenderam um charuto para refletir sobre sua morte. "Quem pensaria em nascer herói em tempos de comerciantes, Fidel?", perguntou o poeta Jaime Sabines. Quem pensaria em morrer ditador em tempos de democratas?, perguntarão os liberais.

    Seu legado já está sendo dissecado pelos jornais; mas o único que conseguiu capturar a verdadeira notícia em sua morte foi o jornal "Le Monde": o que surpreende não é que Castro tenha morrido, é que mesmo sem ele, Cuba sobreviva.

    Eu me recuso a cair na chata e fácil correção política que se apossou do jornalismo contemporâneo. Mesmo com todos os prejuízos cometidos, Castro foi uma figura que me inspirou. Mas também devo ser honesto comigo mesmo. Como muitos, devo mais a minha exaltação a sua figura a uma visão cultuada por mim que a uma realidade absoluta, se é que ela existiu. Interessa-me mais o Castro imaginário que às vezes me persegue pelos bairros da Cidade do México, que o Castro dos documentários e das biografias. Admirei o Castro-símbolo, não necessariamente o Castro humano.

    Seria exagero presumir que conheci o Comandante, mas posso dizer que entre as tantas coisas que estive a ponto de fazer em minha vida, essa foi uma das mais memoráveis. Se o sociólogo Mark Augé construiu um conceito de não-lugar, eu aperfeiçoei o meu de quase-encontro.

    Era o ano de 2003, e eu tinha 16 anos. Meu pai acompanhou uma reunião da CLACSO [Conselho Latino-americano de Ciências Sociais] em Cuba e eu me enfiei na viagem. Sempre me custou imaginar de que falavam os pais de direita a seus filhos, nossa cumplicidade nesses dias girada em torno de escrever poesia e falar das esquerdas latino-americanas. Como bom adolescente que havia terminado Cortázar e Neruda, aspirei a entender Marx, amar o Che e sofrer Nietzsche. Ir a Cuba era o ápice de uma adolescência bem arredondada.

    A ilha não decepcionou; não conseguimos ingressos para o Tropicana, mas encontramos Noam Chomsky no lobby do hotel, Robert Dahl em um hall e González Casanova em um elevador. Os mitos se moviam pelo hotel cubano como se estivéssemos em um filme de Wes Anderson.

    No jantar, meu pai me presenteou com um convite para entrar com ele na conferência. Fidel daria as palavras iniciais. Minha emoção foi rapidamente moderada pela voz do Comandante. Os organizadores ofereceram fones com tradução em inglês e espanhol. Olhei, confuso, para o ministro da Juventude, que pedia um par de fones. Logo entendi a razão: não se entendia nada do que Fidel dizia. Se teria de haver revolução, ela teria de ser em forma de pantomima.

    Quando, no dia seguinte, Noam Chomsky terminou, o Comandante rapidamente pediu a palavra. O encontro dos dois símbolos da esquerda foi menos glorioso que alguém poderia esperar. Sobrecarregados pela interminável pergunta de Castro, eu e meu pai fomos a Bodeguita del Medio e, duas horas depois, voltamos ainda a tempo do encerramento.

    Chomsky teve duas grandes resistências heroicas; todos sabem de sua participação ativa na luta pelos direitos civis em 1967, mas poucos sabem do afinco com que lutou contra o sono naquela noite em que o Comandante falava com ele.

    Terminada a conferência, me aproximei em busca de uma saudação de Fidel; a dois metros de distância, um braço cubano me deteve com um sorriso amável. "Comandante!", gritei em meu desespero e vi seus olhos recaírem sobre mim e sua mão fazer um movimento. Uma foto capturou o momento em que quase conheci o político que definiu o século 20.

    Nos finais de semana, gosto de caminhar até o Café La Habana da Cidade do México, onde ele e Che Guevara planejaram a revolução. Há algo que me comove profundamente na história de dois exilados tomando café e planejando uma revolução num lugar que leva o nome de seu futuro reino. Que eles conseguiram e resistiram tantos anos a batalha contra o império mais poderoso do mundo, justifica o motivo pelo qual tento planejar todos meus grandes projetos na esquina deste café.

    Fidel se foi, mas para alguns de nós sua vida permanece como um símbolo de que não há sonho pequeno quando é perseguido com um amigo em um café.

    EMILIO LEZAMA é escritor mexicano e diretor da revista "Los Hijos de la Malinche"

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