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    Venezuelanos famintos fogem de barco do colapso econômico

    NICHOLAS CASEY
    DO "NEW YORK TIMES", EM WILLEMSTAD, CURAÇAO

    28/11/2016 12h28

    O contorno escuro da terra mal tinha surgido no horizonte quanto o contrabandista forçou todos os passageiros a pularem no mar.

    Roymar Bello gritou. Ela era um dos 17 passageiros que embarcaram em julho em um pesqueiro sobrecarregado e de motores envelhecidos, esperando escapar do desastre econômico na Venezuela e encontrar vida nova em Curaçao, uma ilha no Caribe.

    Temendo as autoridades, o contrabandista se recusou a aportar. Ordenou que Bello e os demais passageiros saltassem na água, e apontou para a costa, bem distante. Em pânico, ela foi jogada do barco e caiu ao mar, desaparecendo no escuro da noite.

    Mas Bello não sabia nadar.

    Ela já estava afundando quando um de seus colegas migrantes a segurou pelos cabelos e arrastou na direção da ilha. Os dois chegaram à costa em uma ponta rochosa, varrida pelas ondas. Machucados e sangrando, eles galgaram as pedras, orando por ajuda —emprego, dinheiro, alguma coisa para comer.

    "Valeu a pena", disse Bello, 30, acrescentando que os venezuelanos como ela "estão em busca de uma coisa só: comida".

    A Venezuela um dia foi um dos mais ricos países da América Latina, repleta de petróleo e próspera a ponto de atrair imigrantes de lugares variados, como a Europa e o Oriente Médio.

    Mas depois que o presidente Hugo Chávez assumiu o compromisso de domar a elite econômica do país e redistribuir a riqueza aos pobres, os ricos e a classe média fugiram em grande número para países mais acolhedores, criando o que os demógrafos descrevem como a primeira diáspora venezuelana.

    Agora, uma segunda diáspora está em curso —muito menos endinheirada e muito menos bem recebida.

    Mais de 150 mil venezuelanos fugiram do país apenas nos últimos 12 meses, o total mais alto em mais de uma década, de acordo com acadêmicos que pesquisam o êxodo.

    E com o colapso da revolução socialista de Chávez e a ruína econômica decorrente, os alimentos e remédios estão cada vez mais longe do alcance da população comum, o que faz com que as pessoas pobres que as políticas venezuelanas deveriam supostamente ajudar agora também estejam entre os emigrantes.

    Dezenas de milhares de venezuelanos desesperados percorrem a bacia amazônica para chegar ao Brasil. Eles preparam complicadas tramoias para entrar no Caribe, via aeroportos que até recentemente os recebiam sem formalidades. Quando a Venezuela abriu sua fronteira com a Colômbia por apenas dois dias, em julho, 120 mil pessoas atravessaram, simplesmente para comprar comida, segundo as autoridades. E número incalculável delas optou por não voltar.

    Mas talvez o mais notável sejam os venezuelanos que agora fogem por mar, em uma imagem simbolizada pelas perigosas jornadas de fuga de Cuba ou do Haiti —mas que nunca haviam acontecido na rica Venezuela, grande produtora de petróleo.

    A inflação vai chegar aos 500% este ano, e no ano que vem atingirá espantosos 1.600%, de acordo com estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), causando encolhimento dos salários e criando uma nova classe de venezuelanos pobres que abandonam carreiras profissionais e sobrevivem precariamente no exterior.

    O êxodo vem ocorrendo tão rápido que, de 2015 para cá, cerca de 30 mil venezuelanos se mudaram para a região do país que faz fronteira com o Estado brasileiro de Roraima, segundo as autoridades. Agora, o exército brasileiro está reforçando suas patrulhas nas rodovias e rios, na expectativa de ainda mais chegadas.

    "Estamos no começo de uma crise humanitária sem precedentes nessa parte da Amazônia", disse o coronel Edvaldo Amaral, o chefe de defesa civil do Estado. "Já estamos vendo advogados venezuelanos trabalhando como caixas em supermercados, venezuelanas recorrendo à prostituição, indígenas venezuelanos pedindo esmolas nas ruas".

    As pequenas nações caribenhas vizinhas da Venezuela são bem menos acolhedoras, afirmando que simplesmente não há como absorver as chegadas. As duas mais próximas à costa venezuelana, Aruba e Curaçao, para todos os efeitos selaram as fronteiras para os venezuelanos pobres desde o ano passado, forçando-os a mostrar que carregam pelo menos US$ 1 mil (R$ 3,4 mil) em dinheiro antes de autorizar sua entrada —o que equivale a mais de cinco anos de salário para um venezuelano que ganhe salário mínimo.

    Os dois países reforçaram suas patrulhas e vêm deportando mais gente, e Aruba chegou a reservar um estádio esportivo para deter até 500 imigrantes venezuelanos depois que eles forem apanhados, de acordo com as autoridades.

    É uma dramática virada para os venezuelanos, que até recentemente iam a Curaçao para gastar dinheiro como turistas, e não para implorar por trabalho.

    "Todo mundo diz que nós somos da Venezuela, somos de um país rico que tem tudo", contou Bello sobre suas conversas na ilha. "E eu respondo que já não é mais assim".

    Casas vazias agora pontuam as ruas da cidade pesqueira de La Vela, onde Bello vivia na Venezuela, depois que seus proprietários partiram mar afora.

    A jornada até Curaçao é uma travessia de cem quilômetros repleta de ondas fortes, gangues marinhas armadas e lanchas da guarda costeira que buscam capturar os emigrantes e devolvê-los a seu país.

    Caso superem esses obstáculos, os migrantes são jogados do barco e têm de nadar até a terra e se esconder na vegetação, à espera de contatos que os introduzem clandestinamente na economia turística da ilha caribenha. Eles fazem faxina em restaurantes, vendem quinquilharias nas ruas ou oferecem sexo a turistas holandeses, forçados a trabalhar em bordéis por contrabandistas que querem receber o pagamento por suas passagens, dizem as autoridades de Curaçao.

    Incontáveis famílias venezuelanas vivem como a de Bello, hoje. Incapazes de bancar mais de uma refeição ao dia, elas se veem dispersas por mares e terras desconhecidos.

    Rolando, o irmão de Bello, trabalha como pedreiro em Curaçao, e a mulher dele recentemente foi para lá se unir ao marido, deixando a filha de sete anos do casal com parentes na Venezuela. Um tio não teve a mesma sorte: está preso em Curaçao, acusado de contrabandear migrantes como os seus parentes.

    Há também Roger, o irmão de Roymar Bello, cuja namorada Yaisbel, 19, está grávida de seis meses. Ele também disse que deseja ir para Curaçao a fim de sustentar o filho.

    Por fim há Maria Piñero, a mãe de Bello, que a despeito dos problemas encontrados pela filha, também estava determinada a fazer a travessia marítima.

    "Estou nervosa", ela diz. "Estou indo embora com nada. Mas tenho de ir. De outra forma morreremos de fome aqui".

    No final de setembro, Piñero, 47, embarcou em um barco em uma pequena cidade na costa norte da Venezuela. Ela caiu de joelhos e orou a Deus para sobreviver à jornada e encontrar vida melhor em Curaçao. Os demais passageiros, com lágrimas nos olhos, também começaram a rezar.

    Eles caminharam com água até o peito, carregando suas poucas posses em fardos sobre a cabeça, e entraram no barco. O motor foi ligado, e a embarcação partiu rumo ao horizonte.

    Rolando Bello estava sentado em um píer de Curaçao, preocupado com a mãe. Ele conhecia bem os perigos, tendo feito a travessia duas vezes.

    Agora, sua família se veria sujeita aos perigos e caprichos da passagem uma vez mais.

    O barco de sua mãe estava se preparando para partir. Sua irmã, arrastada para a costa pelos cabelos, havia sido apanhada pelas autoridades de Curaçao e deportada de volta à Venezuela algumas semanas antes. Desesperada por trabalho, ela em lugar disso havia conseguido entrar clandestinamente em Aruba, aceitando um empréstimo de uma quadrilha de contrabandistas para chegar até lá.

    As autoridades de Curaçao, como as muitas de pequenas ilhas, temem que os imigrantes roubem trabalho dos moradores locais ou recorram a crimes violentos.

    Alex Rosaria, legislador na ilha, se preocupa com a possibilidade de que os imigrantes desgastem ainda mais a economia de Curaçao, onde o desemprego já chega a 11%. "Temos capacidade limitada de receber refugiados", disse Rosaria.

    Por enquanto, a tarefa de restringir sua entrada cabe à guarda costeira holandesa no Caribe. Rob Jurriansen, oficial da marinha holandesa que comanda as operações em Curaçao, diz que sua pequena frota intercepta apenas uma minúscula fração dos emigrantes saídos da Venezuela.

    A estação dele fica perto da baía de Caracas, agora o ponto de desembarque para muitas das pessoas que fogem da Venezuela. Uma vegetação espessa e repleta de espinhos cobre a ilha por muitos quilômetros, na área, e os migrantes precisam atravessá-la ao desembarcar em Curaçao.

    Do outro lado da passagem, o mar havia se acalmado e Piñero estava se preparando para sua segunda tentativa. Depois de quase chegar à ilha em setembro, o barco em que ela estava recuou, temendo estar sendo seguido pela guarda costeira.

    A nova tentativa aconteceu em uma noite clara de outubro. Piñero enviou uma mensagem aos parentes pouco antes de partir. Mas as águas calmas e o céu iluminado significavam que o barco estava muito visível ao chegar a Curaçao, pouco antes do amanhecer.

    Roymar Bello foi a primeira a descobrir o que aconteceu a seguir, por um telefonema de um amigo às 6h. Ela abriu o computador e já estavam circulando imagens dos passageiros detidos pelas autoridades. Entre eles, Roymar reconheceu sua mãe.

    Piñero e mais 12 passageiros terminaram detidos, ela revelou em uma breve entrevista telefônica, sob observação de guardas. Piñero parecia desesperada, sua voz estava embargada.

    "Achei que valia pena tentar, mas no fim não valeu, porque vou ser mandada de volta", disse Piñero. Depois disso, ouvi um estalido e a ligação foi cortada.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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