• Mundo

    Saturday, 18-May-2024 20:32:54 -03

    Para mídia oficial da China, vitória de Trump não cura a 'doença americana'

    CHRIS BUCKLEY
    DO "NEW YORK TIMES", EM PEQUIM

    15/12/2016 08h28

    Donald Trump não é uma figura muito popular em Pequim ultimamente. Mas a elite governante chinesa parece estar se consolando com a ideia de que o presidente eleito dos Estados Unidos vai assumir a direção de um país que cambaleia rumo à desunião e o declínio.

    Vários artigos publicados em veículos do Partido Comunista nas últimas semanas argumentaram que o ano turbulento que chega ao fim nos EUA mostra que o país é disfuncional, dissoluto e marcado pela corrupção, a polarização social e política, o endividamento insensato e uma mídia noticiosa enfraquecida.

    "Pode um 'sonho americano' acometido da 'doença americana' durar muito tempo?" indagou uma manchete na edição mais recente do "Papéis Bandeira Vermelha", periódico partidário que vem ganhando destaque crescente nos últimos anos.

    Damon Winter - 1º.nov.2016/The New York Times
    Donald Trump não é uma pessoa muito popular na China
    Donald Trump não é uma pessoa muito popular na China

    "Os problemas políticos da América são há muito tempo os instigadores de seus outros problemas", diz o ensaio que acompanha a manchete, assinado por um pesquisador da Academia Chinesa de Ciências Sociais, um dos principais "think tanks" do governo.

    "O declínio claro e inequívoco da confiança do público no chamado 'sonho americano' reflete diretamente sua falta de otimismo no futuro do país e em suas próprias perspectivas", escreveu o pesquisador, Liu Weidong. "O sistema político americano, no passado seu maior motivo de orgulho, tem constantemente se mostrado incapaz de deter a conduta desprezível de políticos incompetentes."

    Alguns dos comentários foram publicados antes de Trump ter provocado o repúdio do governo chinês ao receber um telefonema da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, e então colocar em dúvida sua adesão à política de uma China única. O governo chinês diz que essa política, que mantém o Taiwan diplomaticamente isolado, é a base de suas relações com Washington.

    Um porta-voz do Escritório de Assuntos de Taiwan do governo chinês reforçou esse aviso na quarta-feira.

    "Se essa base sofrer interferência e destruição, então o desenvolvimento sadio e estável das relações sino-americanas estará fora de questão e a paz e estabilidade do estreito de Taiwan sofrerão um impacto grave", disse o porta-voz, An Fengshan, em entrevista coletiva à imprensa em Pequim. O estreito de Taiwan separa Taiwan e a China continental.

    É claro que visões negativas das perspectivas dos EUA não são encontradas unicamente na China. A eleição rancorosa e a vitória de Trump suscitaram uma abundância de reações pessimistas de críticos da esquerda e da direita, dentro dos EUA e em todo o mundo. E, mesmo antes da vitória de Trump, a mídia estatal chinesa estava aproveitando a eleição para argumentar que os EUA vivem uma desordem política que ressalta a razão por que o governo unipartidário é a opção certa para a China.

    Mas esses lamentos pós-eleitorais sugerem que os pesquisadores e ideólogos que moldam e refletem as opiniões chinesas oficiais dos Estados Unidos acreditam muito pouco na promessa de Trump de "fazer a América ser grande outra vez".

    Existe na China há anos um debate entre pesquisadores que enxergam os EUA como estando em declínio e aqueles para os quais a força e capacidade de renovação do país ainda são enormes. A primeira visão é mais prevalente hoje, especialmente na medida em que o presidente Xi Jinping, que chegou ao poder em 2012, vem se concentrando sobre o que vê como sendo a ameaça dos valores liberais ocidentais.

    "A visão chinesa majoritária dos EUA passou da admiração para a dúvida, especialmente desde a crise financeira, e hoje, cada vez mais, para a rejeição dos valores americanos", disse em entrevista Shi Yinhong, diretor do Centro de Estudos Americanos da Universidade Renmin, em Pequim.

    "Cada vez menos acadêmicos de elite expressam grande respeito e admiração pelos Estados Unidos", disse Shi. "Como o 'brexit', a vitória de Trump é vista como uma oportunidade para a mídia oficial ensinar o público que ele não tem motivos para invejar o Ocidente."

    Nos três últimos domingos o "Diário do Povo", jornal principal do Partido Comunista, dedicou uma página inteira à dissecação dos males da América.

    "A América enfrenta no momento grandes reformas domésticas que exigem alguém que seja sagaz e previdente", disse um texto na primeira parte da série, publicada no final de novembro ao lado de três outros artigos sobre o mesmo tema.

    "Será Trump o homem para essa tarefa? As opiniões divergem", disse o autor, Ye Zicheng, professor na Universidade de Pequim. "Muitos americanos receiam que seu líder não esteja à altura da tarefa. Se ele não estiver, isso não significa que o declínio político doméstico dos EUA vai se agravar?"

    IMPRENSA

    A segunda parte da série fez críticas ácidas à imprensa americana, incluindo o "New York Times", por não ter previsto e explicado a ascensão de Trump, especialmente entre os eleitores da classe trabalhadora.

    "É difícil para uma mídia como essa refletir as realidades da América", dizia um artigo da edição. "É duvidoso, também, até que ponto ela pode contribuir para o desenvolvimento da democracia americana."

    A edição mais recente da série argumentou que as políticas de Trump vão elevar o déficit orçamentário dos Estados Unidos, já perigoso, para um nível que encerra riscos ainda maiores.

    "Será difícil evitar um aumento crescente do nível da dívida", dizia um dos artigos da edição. "A situação de endividamento do governo americano é sem dúvida alguma insustentável."

    Existe algo de irônico em tudo isso –entre outras coisas em um jornal do Partido Comunista, fortemente censurado e que ecoa fielmente as posições oficiais, repreender a imprensa americana por não ter enfrentado os poderosos.

    Os problemas de dívida da própria China também preocupam investidores, e o combate à corrupção oficial travado por Xi trouxe à tona níveis de pilhagem que não têm equivalência em Washington. E, ao mesmo tempo em que políticos chineses gostam de criticar os Estados Unidos, eles frequentemente enviam seus filhos para estudar no país. A filha de Xi, por exemplo, foi aluna da Universidade Harvard.

    A duração e intensidade das críticas vão depender das políticas seguidas por Trump depois de assumir a Presidência, disse Qiao Mu, comentarista liberal e pesquisador da Universidade de Estudos Internacionais de Pequim.

    "Eles sempre têm duas caras", disse Qiao. "Uma delas fala da amizade entre a China e os Estados Unidos, mas também há as críticas e a desconfiança da América e seu sistema político. Quando um líder se prepara para visitar o outro país, sempre haverá artigos de teor positivo."

    Tradução de Clara Allain

    [an error occurred while processing this directive]

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024