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    Análise

    Mário Soares guiou país rumo à UE e não cedeu à tentação soviética

    MATHIAS DE ALENCASTRO
    ESPECIAL PARA A FOLHA

    08/01/2017 02h00

    No ano em que a social-democracia europeia parece profundamente abalada, a morte de Mário Soares, figura tutelar da esquerda democrática portuguesa, ganha uma dimensão simbólica.

    Nascido numa família de tradição laica e republicana, Soares começou a carreira circulando nos grupos comunistas antes de se afastar para criar, em 1955, o seu próprio movimento antisalazarista, a "Resistência Republicana e Socialista", protótipo do Partido Socialista que viria a fundar em 1973.

    José Manuel Ribeiro - 19.jan.2006/Reuters
    O presidente e primeiro-ministro de Portugal Mário Soares faz campanha em Lisboa em 2006
    O presidente e primeiro-ministro de Portugal Mário Soares faz campanha em Lisboa em 2006

    Durante os anos 1950 e meados dos 1970, Soares foi um dos principais opositores à ditadura salazarista, ao lado do líder comunista Álvaro Cunhal e do general dissidente Humberto Delgado. Advogou inúmeras vezes em defesa dos perseguidos pela ditadura, o que lhe rendeu doze detenções e dois exílios, em São Tomé e Príncipe e em Paris.

    Regressou a Lisboa no chamado trem da liberdade, que trazia de Paris e de outras cidades europeias exilados portugueses, três dias depois da insurreição de 25 de Abril 1974, que derrubou a ditadura portuguesa.

    A volta dos exilados desencadeou uma nova sequência politica marcada pelo conflito entre Soares, liderança pró-europeia, e Álvaro Cunhal, ligado a Moscou.

    Em plena Guerra Fria, a situação política do país ganhou as manchetes dos jornais do mundo inteiro. Americanos, soviéticos e diplomatas alemães e franceses seguiam de perto os rumos da crise política portuguesa, agravada pelo impacto da descolonização nas possessões africanas. Estrelas nascentes, como Paul Krugman, vinham dar palpites sobre a periclitante economia portuguesa.

    Parisienses da geração de 1968 iam para o Alentejo para continuar a revolução fracassada na França.

    Deslumbrado com o resto do mundo depois de décadas de censura e de isolamento, o Portugal pós-fascista e pós-colonial encontrava-se em uma encruzilhada entre dois caminhos: a inserção no projeto europeu e a tentação pró-soviética.

    Depois de três anos intensos, marcados pelo verão quente de 1975 quando um golpe de inspiração comunista quase se concretizou, Soares triunfou, e Portugal deu início a uma das fases mais prósperas da sua história: a integração em passo acelerado na União Europeia.

    Soares foi o fiador desse processo. Próximo do então presidente francês François Mitterand (1916-1996) e dos ex-chanceleres alemães Willy Brandt (1913-1992) e Helmut Kohl, recebeu a ajuda das instituições europeias.

    Negociador do término do império colonial português, ganhou o respeito de muitos países do Terceiro Mundo. Conquistou a admiração dos americanos por ter impedido que Portugal se tornasse uma nova Albânia, em referência ao país do Leste Europeu onde, na mesma época, chegava ao poder o ditador Enver Hoxha (1908-1985).

    Estabeleceu uma relação de convivência cordial com os comunistas portugueses, que continuaram a ser uma força política importante.

    Soares levou um Portugal combalido a bom porto, mas não deixa de ser uma figura controversa. Assim, muitos portugueses continuam a responsabilizar Soares pela descolonização.

    Os "retornados" —milhares de portugueses forçados a regressar depois de nascerem ou passarem grande parte da vida nas colônias— formam ainda hoje um grupo visceralmente anti-Soarista.

    A sua tentativa de regressar à Presidência em 2006, aos 81 anos, o impediu de sair da política pela grande porta. Sua campanha, dirigida aos jovens eleitores, foi ridicularizada, e o seu desempenho eleitoral foi pífio, com apenas 14% dos votos.

    Mas esse episódio embaraçoso não foi suficiente para manchar seu legado.

    Portugal, um dos únicos países europeus onde o neofascismo não tem prosperado, é hoje referência de estabilidade política num continente tumultuado.

    No meio do marasmo da social-democracia, seu sucessor no Partido Socialista, António Costa, selou uma aliança histórica com os comunistas, encerrando o conflito aberto depois da Revolução dos Cravos.

    Um panorama animador para um país que, em 1974, caiu nas mãos de Soares em estado de calamidade militar, social e política.

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