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    Governo Trump

    OPINIÃO

    Ter um mentiroso na Casa Branca é um desastre para a democracia

    GIDEON RACHMAN
    DO "FINANCIAL TIMES"

    24/01/2017 13h16

    O homem da BBC riu ao relatar as falsas afirmações da Casa Branca sobre o tamanho do público na posse de Donald Trump. Ele deveria ter chorado. O que estamos testemunhando é a destruição da credibilidade do governo dos EUA.

    Esse espetáculo de mentiras óbvias que está sendo promovido pela Casa Branca é uma tragédia para a democracia americana. Mas o resto do mundo —e, em particular, os aliados dos EUA— também deveria estar assustado. Um governo Trump que é viciado em "grandes mentiras" também tem implicações muito perigosas para a segurança global.

    Como colocou Robert Moore, o correspondente da ITN em Washington, "se o secretário de imprensa da Casa Branca diz coisas que sabemos serem demonstravelmente falsas, por que confiaremos nele sobre a Coreia do Norte, a Rússia, o Irã [e a] guerra ao EI?" Essa não é apenas uma boa pergunta —é vital.

    Há crises internacionais durante todas as presidências americanas. A administração Trump provavelmente será mais inclinada a crises, diante da natureza volátil e agressiva do novo presidente.

    Quando um confronto internacional estava à espreita, os EUA tradicionalmente buscavam apoio em seus aliados —na ONU ou mesmo no campo de batalha. Mas como os EUA poderão atrair apoio, na era Trump, se seus aliados não acreditarem no que o presidente dos EUA e seus assessores dizem?

    É verdade que a fé na palavra da América foi muito prejudicada pelo fracasso em encontrar armas de destruição em massa depois da invasão do Iraque em 2003. Mas a maioria dos amigos dos EUA ainda estão dispostos a acreditar que os EUA foram enganados com base em informações falsas e não estavam mentindo deliberadamente para defender a tese da guerra.

    Desde a guerra do Iraque, o governo Obama fez muito para reconstruir a fé na credibilidade do governo americano.

    Trump está desfazendo todo esse trabalho em alguns dias. Ele está em uma categoria diferente de desonestidade dos vilões de ontem, como Dick Cheney, o vice-presidente de George W. Bush. Com Trump, as mentiras são tão frequentes e flagrantes que são inegáveis.

    Alguns podem argumentar, em desespero, que mentir sobre o tamanho da multidão na posse, ou sobre discussões com os serviços de inteligência, são apenas "mentirinhas" que não precisam afetar a credibilidade do governo Trump em questões sérias como guerra e paz. Mas isso ignora o fato de que a carreira política de Trump foi embebida em falsidades desde o início. Começou na base de uma mentira —a de que o presidente Barack Obama não havia nascido nos EUA— e continuou em frente.

    Se o governo Trump destruir agora a credibilidade americana, terá dado aos governos russo e chinês uma vitória de proporções históricas. A Guerra Fria foi uma batalha não apenas sobre economia ou poderio militar, mas também sobre a verdade. A União Soviética desmoronou, no final, em parte porque ficou óbvio demais que era um regime baseado em mentiras.

    A Rússia moderna adotou uma forma mais sofisticada de desonestidade. O Kremlin de Vladimir Putin afirma, com uma piscadela de cumplicidade, que todo mundo mente e manipula, e que a Casa Branca não é diferente do Kremlin.

    A Rússia fez algum progresso nessa estratégia. Mas também tem claras limitações. O Kremlin foi incapaz de negar de forma convincente que armamentos russos foram usados para derrubar o voo MH17 da Malaysia Airlines na Ucrânia em 2014. O resultado foi a imposição de mais sanções econômicas internacionais à Rússia.

    Mas, em qualquer futura disputa sobre a verdadeira versão dos fatos durante uma crise internacional, o resto do mundo poderá agora não estar mais inclinado a acreditar na América do senhor Trump do que na Rússia do senhor Putin.

    Ter um mentiroso na Casa Branca é um desastre não apenas para a segurança global, mas também para a causa da democracia em todo o mundo. Até agora, dissidentes na Rússia, na China ou outros regimes autoritários podiam travar uma luta solitária e perigosa pela verdade, e apontar o Ocidente para mostrar que existia um modo melhor.

    Eles podiam afirmar que as mentiras não são a norma e que "a verdade nos libertará". Mas a palavra "liberdade" mal apareceu no discurso de posse de Trump. E o presidente dos EUA é claramente indiferente à verdade.

    Se o governo Trump não for confiável para defender os padrões normais de honestidade na política, a quem mais o mundo poderá recorrer? O governo alemão, liderado por Angela Merkel, não pode fazer isso sozinho.

    O britânico pode estar desesperado demais para fazer um acordo comercial com os EUA para se arriscar em seu relacionamento com Trump. Na verdade, existe um risco real de que Theresa May, a primeira-ministra britânica, se deprecie e a seu país ao abraçar Trump forte demais quando visitar Washington nesta semana.

    As democracias europeias ainda poderão dar um exemplo, demonstrando que a maioria dos países ocidentais não pratica o discurso degradado do trumpismo. Mas o principal papel na proteção da verdade —e portanto da própria democracia— caberá aos americanos.

    A imprensa deverá ser robusta e corajosa. O sistema jurídico, em que a verdade ainda importa, poderá em última instância determinar o destino deste governo. As instituições americanas, da mídia ao Congresso e aos tribunais, demonstraram sua independência da Casa Branca no passado. Agora elas deverão ser testadas como nunca antes.

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