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    Sem esperanças nos EUA, migrantes fazem travessia gelada para o Canadá

    CATHERINE PORTER
    DAN LEVIN
    IAN AUSTER
    DO "NEW YORK TIMES", EM WINNIPEG (CANADÁ)

    13/02/2017 09h42

    Quase três meses depois de assistir à vitória de Donald Trump na eleição presidencial nos EUA, Bashir Yussuf viajou para Noyes, Minnesota, de onde partiu à noite para uma floresta nevada e então atravessou a fronteira não protegida do Canadá.

    "Eu entendi o que estava por vir", explicou o migrante de 28 anos, que escapou de seu país, a Somália, em 2013 para fazer uma viagem tortuosa de cinco meses até San Diego, onde pediu asilo, mas teve seu pedido rejeitado. "Sabia que Trump ia me deportar."

    John Woods/The Canadian Press via AP
    FILE- This Feb. 9, 2017, file photo shows the Canada and United States border crossing near Emerson, Manitoba. Desperate immigrants are flowing across the U.S. border into Canada. America’s neighbor to the north is increasingly being seen as a haven for asylum seekers turned away by the U.S., and are willing to chance a walk across the border in dangerous cold to get there. (John Woods/The Canadian Press via AP, File) ORG XMIT: NYJK107
    Fronteira entre os EUA e o Canadá em Emerson, Manitoba

    Depois de caminhar por três horas, atravessando grandes acúmulos de neve, Yussuf chegou a Emerson, uma pequena cidade agrícola canadense de onde se enxerga a fronteira nevada com o Dakota do Norte e o Minnesota.

    Os 700 habitantes de Emerson estão acostumados a ver "atravessadores da fronteira" e frequentemente lhes dão carona até o escritório da Agência Canadense de Serviços da Fronteira. Mas nunca antes os viram chegar em número tão grande.

    Na manhã antes da chegada de Yussuf com outro somali, na noite do domingo (5), 19 outros africanos tinham emergido no lado canadense da fronteira, esfomeados e gelados depois de passar a noite atravessando campos agrícolas cobertos de gelo.

    Eram tantos que não cabiam dentro da pequena sala da agência de fronteira, então moradores da cidade correram para abrir o salão comunitário para que os recém-chegados pudessem se aquecer, cochilar sobre esteiras e fazer um lanche com chá, café e sanduíches de pão com Nutella.

    PROTOCOLO

    Observando uma tendência preocupante, as autoridades de Emerson marcaram uma reunião emergencial na quinta-feira com a polícia e agentes da fronteira para traçar um protocolo de como processar a próxima onda de migrantes, que elas temem que chegue no futuro próximo.

    "Os agricultores estão com medo dos estragos que vão descobrir quando o gelo derreter", disse Greg Janzen, o "reeve", ou executivo-chefe eleito, do município de Emerson-Franklin.
    Na véspera do Natal dois ganenses foram socorridos na estrada ao norte da cidade, depois de dez horas de caminhada em um campo perto da fronteira, afundados em neve até a cintura. Naquela manhã a temperatura estava abaixo de zero, e, devido aos ventos, a sensação térmica era ainda mais baixa. Os homens apresentavam as mãos tão congeladas que acabaram perdendo quase todos os dedos.

    Dados da Agência Canadense de Serviços da Fronteira mostram que nos últimos dois anos algumas poucas pessoas vêm atravessando a fronteira dos EUA em Manitoba e então pedindo asilo no Canadá. Mas pessoas que trabalham com refugiados em Winnipeg, a capital da província de Manitoba, dizem que o número de migrantes teve um aumento nítido desde o outono do ano passado.

    O Conselho Interreligioso de Imigração do Manitoba, conhecido localmente como Welcome Place (Lugar de Boas-Vindas), dá assistência a entre 50 e 60 candidatos a asilo por ano, segundo sua diretora executiva Rita Chahal. "Mas desde abril do ano passado já tivemos 300", ela contou.

    LONGA CAMINHADA

    O governo canadense não forneceu cifras sobre o número de pessoas que pedem o status de refugiadas depois de ingressar ilegalmente no país, mas o sargento da Real Polícia Montada Canadense Harold Pfleiderer disse que "houve um aumento da imigração ilegal para o Quebec, Manitoba e Colúmbia Britânica, sendo o maior aumento verificado no Quebec".

    Uma brecha nas regras que regem os candidatos a asilo leva alguns a caminhar por até oito horas no meio da noite, em paisagens nevadas e sob o frio cortante das pradarias, para chegar a Emerson. Um acordo entre o Canadá e os EUA não permite que as pessoas simplesmente se apresentem na fronteira e peçam asilo, mas as que conseguem entrar no país e então apresentar-se aos guardas de fronteira têm esse direito.

    Agora, diante da incerteza e do medo gerados pelo decreto de Trump sobre a imigração, defensores de refugiados e grupos canadenses de defesa dos direitos humanos exigem que o governo do primeiro-ministro Justin Trudeau cancele ou suspenda o pacto sobre refugiados, conhecido como o acordo de País Terceiro Seguro.

    "Na prática, estamos incentivando as pessoas a atravessar a fronteira de modo irregular", disse o professor de direito da Universidade York Sean Rehaag, especializado em lei de imigração e refugiados.

    SEM SEGURANÇA

    Na quarta-feira (8), o programa de imigração e refugiados da Escola de Direito da Universidade Harvard divulgou relatório dizendo que as ordens executivas sobre imigração emitidas pelo presidente Trump tornam os EUA um país onde pessoas que fogem de perseguição e violência não podem encontrar asilo seguro.

    "Quando o Canadá manda uma pessoa de volta aos Estados Unidos, estamos dizendo que confiamos que os EUA vão proteger essa pessoa, se ela precisar de proteção. No contexto atual não é possível sentir essa confiança", disse Janet Dench, diretora executiva do Canadian Council for Refugees, organização sem fins lucrativos que reúne 170 grupos de defesa de refugiados.

    Nos últimos cinco anos o advogado Bashir Khan, de Winnipeg, já representou 125 refugiados perante o Conselho de Imigração e Refugiados, além dos 17 que representa no momento. Todos tiveram seus pedidos de asilo rejeitados nos EUA.

    "Vamos falar com franqueza", ele disse. "Essas pessoas não tiveram acesso à justiça nos EUA. Foram mantidas em detenção desde o momento em que atravessaram a fronteira do México, e por uma média de nove meses. Elas não sabiam preencher os formulários de asilo. Nenhuma delas recebeu qualquer assistência jurídica."

    DEPORTADOS

    Chahal, da Welcome Place, disse que nos últimos meses o centro vem recebendo outro tipo de solicitante: pessoas como Mourad Hassan, de 32 anos, que fez um voo até Chicago em dezembro e então procurou imediatamente uma maneira de atravessar a fronteira do Canadá, para fazer seu primeiro pedido de asilo ali.

    "Quando Trump virou presidente, tive medo de ele me deportar", explicou o ex-oficial do Exército em Djibuti, que afirmou ter sido torturado por motivos políticos. "Ele não gosta de muçulmanos."

    Saindo de Emerson, os candidatos a refugiados geralmente vão de táxi até Winnipeg, a capital provincial, uma distância de 110 km, onde dão entrada formal em pedidos de asilo, assistência jurídica e de bem-estar social. As audiências geralmente são marcadas para dentro de dois a três meses, mas não há garantias. Em 2015 o Conselho de Imigração e Refugiados aprovou 57,7% dos 16.521 pedidos de refúgio feitos em território canadense. O conselho não contabiliza quantos desses pedidos são feitos por pessoas que entraram no Canadá sem passar por controles de fronteira.

    Com a situação legal da ordem executiva de Trump ainda incerta, o governo canadense não demonstra entusiasmo por suspender seu acordo com Washington.

    Na sexta-feira, Camielle Edwards, porta-voz do ministro da Imigração canadense, Ahmed Hussen, disse que o acordo "continua a ser uma ferramenta importante para o Canadá e os EUA colaborarem no processamento ordeiro de pedidos de refúgio feitos em nossos países".

    Dench disse que a história sugere que a fronteira canadense não será inundada por candidatos a refúgio se as pessoas que vêm dos EUA forem autorizadas a pedir refúgio na fronteira.

    "Não é como se todo o mundo nos EUA de repente quisesse vir para o Canadá", ela disse. E, desse modo, "não teríamos mais gente atravessando de modo irregular e perdendo os dedos".

    TRAVESSIA

    Yussuf se preparou para o trajeto até Emerson, usando roupas de baixo térmicas e luvas grossas. E pagou US$600 a um guia para levá-lo até perto da fronteira.

    Outros candidatos a asilo contaram ter ouvido de taxistas em Grand Forks, Dakota do Norte, que seriam deportados na fronteira. Os taxistas ofereceram levá-los até um lugar que era melhor para fazer a travessia ilegal, mas ficava mais distante da fronteira.

    E as pessoas não estavam adequadamente preparadas para a travessia invernal. Um homem, Zurekaneni Issah Adams, usava apenas uma jaqueta jeans fina e luvas de marceneiro. Sua travessia levou sete horas.

    "Tivemos sorte. Deus nos salvou", disse Adams, 36 anos, que deixou Gana em 2014 e foi ao Brasil, de onde partiu a pé, de ônibus e de barco até a fronteira da Califórnia.

    Depois de passar 16 meses detido, disse Adams, seu pedido de asilo nos Estados Unidos foi recusado. No Canadá, ele tinha uma audiência de asilo marcada para a semana passada, mas ela foi adiada.

    "Tenho sonhos grandes", ele disse. "Não vou perder a esperança."

    Tradução de Clara Allain

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