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    Trump busca poderio militar como arma de negociação com outros países

    MAX FISHER
    DO "NEW YORK TIMES", EM WASHINGTON

    06/03/2017 17h00

    A visão do presidente Donald Trump sobre o poderio americano, que foi uma espécie de mistério durante a campanha eleitoral, ganhou um novo foco depois de uma semana de discursos e planos de orçamento que sugeriram suas ambições para os militares.

    Elas revelam um presidente fascinado pelo poderio militar cru, que ele considera um sinônimo da posição dos EUA no mundo, como instrumento para coagir adversários poderosos como a China e o Irã, que parecem ser sua principal preocupação.

    Ele também parece pouco concentrado nos detalhes das contínuas guerras dos EUA no Afeganistão, no Iraque e na Síria, e globalmente contra a Al Qaeda. Nenhuma dessas missões será resolvida pelos novos porta-aviões que Trump prometeu, e os generais advertem que serão prejudicadas por suas propostas de cortar as verbas da diplomacia e da ajuda externa.

    Isso talvez não seja necessariamente um descuido da parte de Trump, como sugerem analistas, mas sobretudo o fluxo de uma visão de mundo nacionalista que é pouco conhecida hoje, mas dominou a geopolítica nos séculos 19 e 20.

    Esta talvez se revele mais claramente na visão de vitória de Trump.

    Ele retratou o papel principal dos militares como o de vencer batalhas, e vencer batalhas como suficiente para vencer guerras –duas ideias que caíram em desfavor pelo menos a partir da Guerra do Vietnã. Desde então, a maioria dos generais salientou que a guerra é conduzida por conflitos políticos que raramente podem ser resolvidos só por meio da força.

    "Daremos aos nossos militares os instrumentos de que vocês precisarem para evitar a guerra e, se necessário, lutar e fazer uma única coisa. Vocês sabem qual é? Vencer, vencer, vencer", disse Trump na semana passada.

    Talvez seja cedo para dizer se suas opiniões se combinam em uma doutrina Trump. Mas elas sugerem uma implementação de políticas que parecem menos adequadas a qualquer estratégia ou conflito em particular do que uma visão do poderio militar como um fim em si.

    Jonathan Ernst - 02.mar.2017/Reuters
    O presidente Donald Trump visita porta-aviões da Marinha dos EUA, no porto de Newport News, no estado da Virgínia
    O presidente Donald Trump visita porta-aviões no porto de Newport News, no estado da Virgínia

    UMA FORMA DE GUERRA ANTIGA

    Trump expressou seu pensamento militar principalmente em pedidos para a construção de grandes sistemas de armamentos, como porta-aviões e armas nucleares, destinados a lutar grandes guerras.

    Michael Horowitz, um cientista político da Universidade da Pensilvânia, disse: "Isso significa uma força militar otimizada para um potencial conflito com a China, o Irã e, ironicamente, com a Rússia".

    Cada presidente trabalhou para manter a superioridade militar sobre os principais adversários. Mas Trump é incomumente concentrado em preparar-se para um conflito de grandes potências, que o mundo evitou desde a Segunda Guerra Mundial.

    O enfoque de Trump no poderio militar poderá ocorrer literalmente às custas das guerras não convencionais, que os EUA ainda combatem no Afeganistão e em outros lugares.

    Para financiar sua expansão militar, Trump pediu para cortar bilhões de dólares que provavelmente sairão do Departamento de Estado e de programas de ajuda externa. Isto arruinaria a estratégia dos EUA em locais como Afeganistão e Iraque, que inclui diplomacia e esforços políticos como a construção de escolas e o treinamento de policiais.

    Defesa como prioridade - Gastos militares dos EUA (em US$ bilhões)

    ARMAS COMO ELEMENTOS CÊNICOS

    A maioria dos governos chega às prioridades de gastos militares por meio de um processo de três etapas: identificar quais problemas querem resolver, determinar a estratégia que os resolverá e, finalmente, comprar o equipamento necessário para pôr em prática essa estratégia.

    Trump parece realizar esse processo ao contrário.

    "Não acho que devemos supor que os gastos militares de Trump estejam ligados a uma estratégia militar", disse Erin Simpson, uma consultora de segurança nacional que serviu como assessora dos militares no Afeganistão.

    Por que não?

    "Ele não tem tempo para conduzir uma revisão total da estratégia", disse ela. Mas Trump pediu de qualquer forma a construção de novos porta-aviões e capacidades nucleares.

    Isso pode ajudar a explicar por que ele não articulou estratégias para combater a Al Qaeda ou o Estado Islâmico, ou para conter a China: o poderio militar, na visão dele, se traduz diretamente em poder, e poder em vitória.

    Isso combinaria precisamente com a ênfase de Trump na atuação em cena e, acima de tudo, na negociação.

    "Acho que ele vê a força como performática. A utilidade da força está em sua exibição", disse Simpson.

    A doutrina dos EUA há muito pede a dissuasão da guerra por meio do predomínio militar, o que os antigos romanos chamavam de "paz através da força".

    Mas Trump pediu a proliferação de ativos de alto custo, como porta-aviões e armas nucleares, sem articular um objetivo específico, sugerindo que ele os considera fins por si próprios.

    Nessa visão, não seria necessário explicar que capacidades os EUA adquirem com uma Marinha expandida ou como essas capacidades podem ser postas em prática, por exemplo, na Somália. Tampouco seria necessário desenvolver estratégias para as complexas guerras de informação e cibernéticas de amanhã. A força em si prevalecerá.

    Os maiores orçamentos militares - Em 2016, em US$ bilhões

    SÍMBOLOS DE FORÇA

    A ênfase de Trump no conflito de grandes potências e em ativos de alto custo também resolve, deliberadamente ou não, um problema político que perturbou os governos de Barack Obama e de George W. Bush: combater insurgências em situações confusas, caras e muitas vezes invencíveis no sentido tradicional.

    Os estrategistas debaterão por muito tempo qual é a melhor maneira de abordar esses conflitos, mas os políticos de ambos os partidos parecem ter desistido de vê-los como algo além de fardos políticos.

    Em vez disso, Trump escolheu uma batalha que os EUA, como país mais rico do mundo, pode vencer de forma mais confiável: a da corrida militar.

    Mas seu aumento de gastos planejado de US$ 54 bilhões (R$ 169 bilhões) parece ser "um orçamento em busca de uma estratégia", segundo Simpson.

    A menos que o gasto seja a estratégia.

    Ele pediu uma "corrida armamentista" nuclear, por exemplo, apesar de que mesmo na Guerra Fria a corrida armamentista não era uma estratégia deliberada, mas sim um subproduto de uma competição nuclear que nenhum lado considerava desejável.

    Trump, embora um novato em termos de políticas, demonstrou um jeito para símbolos e encenação. Ao construir os sistemas de armas mais caros do mundo, ele os reobjetiva como símbolos de poder.

    Essa performance, sugeriu Horowitz, poderia ser dirigida aos adversários dos EUA, assim como aos próprios defensores de Trump, a quem ele prometeu uma volta à força e à confiança no país.

    "Quando ele pensa nos militares, provavelmente pensa nas representações tangíveis dos militares", disse Horowitz, chamando as armas avançadas de "sinais de força".

    "Acredito que isso não seja muito diferente do modo como grande parte do público americano pensa no poderio militar", acrescentou.

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