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    Escalada anti-imigração assusta reduto islâmico de Detroit, nos EUA

    ISABEL FLECK
    ENVIADA ESPECIAL A HAMTRAMCK E DEARBORN (MICHIGAN)

    12/03/2017 02h00

    Isabel Fleck/Folhapress
    Michigan, marco 2017 Imagens da cidade de Hamtramck, na regiao metropolitana de Detroit, em Michigan, onde a maioria dos habitantes e muculmana Foto: Isabel Fleck/Folhapress
    Grafite em Hamtramck, Michigan, que tem 60% da população muçulmana

    De hijab e segurando um cartaz "terra dos livres, lar dos que têm medo" –referência ao hino dos EUA, no qual o lar é dos "valentes"–, a escritora iraquiana Imanlik Kisi, 69, embarga a voz ao contar que um de seus filhos se esconde no carro para fazer as orações quando está no trabalho.

    "Os colegas gostam dele, só não gostam mais tanto do fato de ele ser muçulmano".

    Hamtramck, Michigan

    A mulher conversou com a Folha enquanto seguia na sexta (10) um ato em Dearborn (subúrbio de Detroit) contra o novo decreto do presidente Donald Trump, que proibirá, a partir da próxima quinta (16), a entrada de refugiados de todo o mundo e de cidadãos de seis países de maioria muçulmana.

    Imanlik diz ter sentido que a hostilidade contra os islâmicos cresceu no país impulsionada pela retórica de Trump. "É o mesmo medo que senti após o 11 de Setembro", diz a iraquiana que mora nos EUA há 35 anos, ao comparar os olhares atraídos por seu hijab na época e agora.

    REFÚGIO SÍRIO - Número de refugiados do país que entraram nos EUA desde abril de 2011

    O fato de viver em Dearborn, cidade com cerca de 30% de seus cidadãos muçulmanos, não a deixa mais tranquila: "se você andar 20 minutos de carro em qualquer direção, sentirá a diferença".

    Também não deixa menos preocupado o iemenita Saad Almasmari, um dos vereadores da primeira câmara municipal de maioria muçulmana no país, na vizinha Hamtramck, onde 60% da população professa a religião.

    "Já não deixo minha mulher ir sozinha a lugares mais afastados. Tenho medo do que possam fazer por causa do véu", diz Almasmari.

    O sentimento de medo é relato constante na região metropolitana de Detroit, onde há 83 mesquitas ou centros islâmicos, segundo o projeto Building Islam in Detroit.

    O temor é pela aversão à comunidade islâmica que o discurso de Trump ajudou a disseminar. "Não tenho medo exatamente dele, mas das pessoas que acreditam no que ele diz", diz Almasmari.

    O sírio Mohammad, 37, que chegou aos EUA em 2014, por exemplo, prefere não responder quando alguém pergunta seu país de origem ao ver o crachá com o nome árabe.

    "Se a pessoa insiste na pergunta, é porque quer confusão", diz Mohammad, que não quis ter o sobrenome publicado. "Estamos apavorados. Sofri um acidente de carro há alguns dias e fiquei com medo de chamar a polícia."

    Muçulmanos na região de Detroit, EUA -

    Além do preconceito, o decreto também torna mais difícil o sonho do sírio rever a mãe, que ficou em Damasco. "E também não posso sair para encontrá-la. Ela já está mais velha, não consigo nem pensar que posso não ver mais a minha mãe."

    Mohammad espera, com a mulher e a filha de quatro anos, o visto de asilo nos EUA, pedido há quase dois anos.

    O administrador iemenita Akil Alhalemi, 35, que está há oito anos nos EUA, também teme pela irmã. Ela vendeu a casa e todos os bens no Iêmen para escapar da guerra e espera há nove meses por um visto americano na Argélia, com o marido e três filhos.

    "Agora dizem que não há previsão de emissão. Eles estão quase sem dinheiro e não podem voltar para o Iêmen."

    A suspensão prevista no decreto de Trump é de 90 dias. Alhalemi, porém, diz acreditar que o prazo pode ser estendido por muito mais tempo. "É só o primeiro passo."

    Editoria de Arte/Folhapress
    Dois principais destinos, desde 2011; percentual de refugiados sírios nas regiões metrolopitanas (% do total)

    REFUGIADOS SÍRIOS

    A região de Detroit começou a ser um destino para imigrantes árabes no fim do século 19, mas foi a partir da década de 1970, com guerras no Líbano, no Iraque e na Síria, que o grupo cresceu consideravelmente, superando os 90 mil no censo de 2000.

    As comunidades já estabelecidas na área acabaram atraindo novos grupos –o que fez com que 1.600 refugiados sírios que chegaram ao país desde abril de 2011 ficassem no local (8% do total).

    Mohammad é um deles. Sua vontade, ao chegar com visto de turista em 2014, era pedir asilo no Canadá, mas foi impedido por uma regra entre os dois governos que obriga o imigrante fazer a solicitação no país que chegar primeiro. Hoje, ele faz planos para tentar retomar a profissão de advogado nos EUA.

    Por enquanto, carrega caixas num mercado local, o que lhe rende US$ 750 por mês –quando suas despesas com aluguel e alimentação para ele, a mulher e a filha ultrapassam os US$ 1.100.

    Nos primeiros meses, pediu dinheiro emprestado ao imã (líder religioso muçulmano) da comunidade, mas depois conseguiu que a família vendesse os bens que deixou na Síria e enviasse uma quantia que hoje é a reserva com a qual paga as dívidas.

    "Aprendi que é melhor não pensar em como era a vida que deixamos para trás."

    Hamoda Abou-Shaar, 23, também teve que recomeçar os estudos, depois de não conseguir aproveitar os quatro anos de faculdade cursados em Damasco e Istambul.

    "O que eu me pergunto é por que as pessoas têm medo de quem quer vir para os EUA para reconstruir sua vida? Acho que a maioria deles nunca entendeu o que é um refugiado sírio."

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