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    'Brexit' reforça a amnésia sobre o período imperial britânico

    GIDEON RACHMAN
    DO FINANCIAL TIMES

    28/03/2017 11h04

    Como peça de publicidade, foi infeliz. O fato de algumas autoridades britânicas se referirem a seus esforços para assinar novos acordos comerciais com países da Comunidade Britânica como "Império 2.0" começou como uma piada interna de departamento. Mas a expressão foi adotada pelos críticos do "brexit" como uma confirmação de que a ideia inteira é conduzida pela nostalgia do império.

    Isso me parece uma séria incompreensão do relacionamento do Reino Unido com seu passado. Mais que obcecados pelo império, os britânicos em geral colocaram toda a experiência imperial no "buraco da memória" descrito pelo escritor George Orwell. A maioria dos britânicos, inclusive políticos importantes, ignora profundamente a história imperial do país.

    Richard Pohle/Reuters
    Primeira-ministra britânica, Theresa May, faz pronunciamento na Downing Street
    Primeira-ministra britânica, Theresa May, faz pronunciamento na Downing Street

    Essa amnésia imperial, entretanto, tem uma influência crucial no "brexit". Significa que seus principais adeptos e os defensores da "Grã-Bretanha Global" compreendem mal o passado, com consequências perigosas para o futuro. Eles falam acaloradamente em retomar a vocação histórica da Grã-Bretanha como "uma grande nação comercial", quando na verdade foi uma grande nação imperial. Essa importante distinção leva a um excesso de confiança sobre a facilidade de se recriar um destino comercial global, em um mundo em que Britannia [termo usado pelos antigos gregos e romanos para se referir à região das ilhas britânicas] não domina mais os mares.

    Na era imperial, a Grã-Bretanha tinha o hábito de explodir os caminhos para chegar aos mercados globais. A Companhia das Índias Orientais foi à guerra quando seus privilégios comerciais foram ameaçados, e acabou estendendo seu domínio à maior parte da Índia. E quando a China tentou deter o comércio do ópio no século 19 a Grã-Bretanha foi à guerra novamente, afundando a frota chinesa e forçando a dinastia Qing a lhe ceder Hong Kong.

    A ignorância dos britânicos com relação a sua própria história imperial é capturada em um trecho da autobiografia de Tony Blair. O ex-primeiro-ministro registra que quando o Reino Unido devolveu Hong Kong à China, em 1997, Jiang Zemin, o presidente chinês na época, sugeriu que a Grã-Bretanha e o Canadá poderiam então deixar para trás o passado. Blair admite que "na época, eu tinha apenas uma compreensão difusa e esboçada do que era esse passado".

    Se a elite britânica de modo geral esqueceu sua própria história imperial, porém, os países que o Reino Unido considera cruciais para seu futuro como nação comercial não o fizeram.

    Shashi Tharoor, diretor da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento indiano, acaba de publicar um relato brilhante do regime imperial britânico na Índia, "Inglorious Empire" [Império inglório]. Os britânicos que falam com confiança em que os "laços históricos e culturais" com a Índia tornarão mais fácil fechar um grande acordo comercial deveriam ler o livro de Tharoor. Ele os ajudaria a ver o mundo pelos olhos das superpotências econômicas emergentes do século 21 –Índia e China–, países outrora colonizados ou derrotados pela Grã-Bretanha; e que, em consequência, abrigam sentimentos muito dúbios sobre o Reino Unido.

    A vaguidão britânica sobre o passado imperial do país reflete a história que é ensinada nas escolas e universidades. O currículo padrão salienta a história política britânica e o desenvolvimento da democracia parlamentar. Quanto às interações britânicas com o resto do mundo, os estudantes aprendem sobre as guerras com Napoleão e Hitler, mas muito pouco sobre o império.

    Para um historiador marciano, a coisa mais interessante na história britânica moderna certamente seria que o país construiu um enorme império global. Mas para os britânicos moldar uma história nacional que se concentra na guerra contra os nazistas –mais que no império– fazia sentido do ponto de vista psicológico. Ela permitiu que a Grã-Bretanha alimentasse uma imagem nacional de defensora da liberdade e bravos perdedores (capturados na eterna popularidade do programa de televisão "Dad's Army"), mais que de opressores imperialistas.

    O fato de a vitória na Segunda Guerra Mundial e a perda do império terem mais ou menos coincidido também ajudou. A vitória na Europa foi um momento de triunfo nacional que amorteceu o golpe psicológico da perda do império. Todos os formadores de opinião britânicos têm 1945 carimbado na memória como o ano que marcou a vitória na Europa. Poucos poderiam dizer que 1947 foi o ano da independência da Índia.

    A vitória em duas guerras mundiais também cimentou o papel do Parlamento como símbolo da nação e da liberdade. Foi do plenário da Câmara dos Comuns que Winston Churchill fez sua famosa promessa de "combatê-los nas praias". A história doméstica que a elite britânica adora é a história do Parlamento: Oliver Cromwell, William Gladstone, os grandes atos reformistas e afins. A marca mental disto nos políticos modernos britânicos se reflete na decisão de chamar a lei que retira a Grã-Bretanha da União Europeia de "Grande Ato de Repulsa", o que é supostamente uma referência deliberada ao Grande Ato de Reforma de 1832.

    Se a primeira-ministra Theresa May realmente quiser forjar um futuro para uma "Grã-Bretanha global", poderia considerar mudar o tipo de história que seus cidadãos aprendem. Seria útil se os futuros políticos britânicos entendessem a importância não apenas de 1939, ano em que irrompeu a Segunda Guerra Mundial, mas também de 1839, quando estourou a primeira guerra do ópio.

    Mas seria injusto dizer que o establishment britânico esqueceu totalmente os grandes construtores de império do passado. Palmerston, que foi primeiro-ministro na época da segunda guerra do ópio, nos anos 1850, ainda é lembrado no Ministério das Relações Exteriores. O gato do departamento leva seu nome.

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