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    Isolado em Aleppo, ícone da guerra civil fala de Roberto Carlos e Hitler

    YAN BOECHAT
    ENVIADO ESPECIAL A ALEPPO

    24/04/2017 02h00

    Os cabelos levemente desgrenhados e a vistosa barba branca aparada com cuidado mostram que Mohamed Anis é um homem vaidoso.

    Aos 70 anos, os óculos de prata de aros arredondados e o lenço estampado em vermelho a cobrir o pescoço lhe emprestam um ar de dândi em meio aos escombros do que um dia foi seu palacete na agora destruída Aleppo.

    "Você também quer minha radiola Victor ao lado da cama?", pergunta, preparando-se para acender o cachimbo e tentando re-encenar a imagem que o tornou famoso.

    Clicada pelo fotógrafo libanês da agência AFP Joseph Eid, a imagem mostra Anis na mesma cama, segurando o mesmo cachimbo e supostamente ouvindo ópera em um gramofone Victor do início do século passado.

    A imagem se transformou em um símbolo de resistência, resiliência e senso de humanidade em meio à barbárie da Batalha de Aleppo. Segundo estatísticas nem sempre confiáveis em conflitos dessa magnitude, cerca de 20% das quase 500 mil pessoas que já morreram nesta guerra perderam a vida aqui.

    O quarto de Anis já não tem os escombros da fotografia icônica, tirada poucas semanas após o governo de Bashar al-Assad ter finalmente reconquistado um dos principais bastiões dos rebeldes islamistas ligados ao Estado Islâmico e à Al Qaeda na Síria.

    Ele contratou três mulheres para ajudá-lo na limpeza do casarão que o fez ficar em Aleppo ao longo de toda a guerra. "Tive que ficar, senão tudo seria destruído e roubado, me transformei no guardião físico e moral da minha história", diz ele, mostrando uma de suas radiolas que quase não funcionam mais.

    É nessa casa construída antes de seu nascimento por seu pai que ele guarda as maiores paixões da sua vida: carros, objetos históricos, livros, uma quantidade incrível de embalagens para batons e esmaltes e referências a Hitler.

    Entenda a guerra na Síria

    No cômodo ao lado de seu quarto, Anis guarda a imagem em tamanho quase real de quem considera um ídolo.

    Pintado à mão, o desenho de Adolph Hitler erguendo o braço a frente com a mão espalmada ocupa quase toda a parede do quarto de uma das filhas de Anis. Sobre Hitler, as bandeiras da Alemanha e da Síria se unem. Ao seu lado, a frase "Se lhe disserem que ele morreu, desconfie, escrita em espanhol e árabe".

    "Sou um humanista, a humanidade é minha pátria, os seres humanos meus irmãos, mas acho que Hitler foi injustiçado", diz. "Foi um grande nacionalista, que queria o melhor para os alemães."

    Anis gosta tanto do ditador alemão que assassinou sistematicamente mais de 6 milhões de pessoas, judeus em sua enorme maioria, que decidiu batizar o filho mais novo de Abdul Hitler.

    Ele teve alguns problemas na escola, com alguns professores perguntando por que ele gostava do Hitler, conta.

    Mas ele é esperto e dizia que queria que a Síria fosse o país mais importante do mundo, como Hitler queria para a Alemanha, conta, diante de uma pichação do menino na cozinha, antes de a guerra começar.

    Abdul, que agora tem 20, gostou tanto da referência ao líder nazista que substituiu a palavra Hitler por uma suástica na assinatura. Pela casa, seu nome seguido do maior símbolo do nazismo está em paredes, pilastras e móveis.

    Anis é também um colecionador de carros antigos. Tem 20 deles no quintal e na rua em frente. "Fiquei por eles, são minha paixão. Quando um deles era atingido por uma bala ou destroço, doía como se um filho meu tivesse sido ferido", conta, emocionado pela primeira vez desde que começou a contar a experiência na guerra.

    "Os carros antigos são como amigos fieis, daqueles que podemos confiar", diz. "Esses novos, de chapa fina, eu não entro neles, são como potenciais traidores."

    Pai de três mulheres e dois homens, casado com duas mulheres, Mohamed Anis foi o único da família a ficar em Aleppo. As filhas seguiram para a área controlada pelo governo, os filhos saíram do país para não precisar lutar, e as mulheres partiram porque, diz ele, não se aturavam.

    "Elas brigavam muito, ciúmes. Eram mais difíceis que o Estado Islâmico e a Al Qaeda. Juntos!", diz, rindo.

    Ex-estudante de medicina em Zaragoza, na Espanha, fala espanhol com quase perfeição. Fala ainda francês, arranha no alemão e diz que seu inglês é quase como o de um nativo. Mas se recusa a falar.

    "Tenho nojo de falar inglês, eles são responsáveis por tudo o que está acontecendo. Dividiram nossa terra, deram a Palestina para os sionistas, nos traíram", diz, para, em seguida, lembrar que havia aceitado falar sobre tudo, menos política.

    Questionado sobre o papel francês no Tratado de Sykes-Picot, que serviu como base da criação dos países que hoje formam o Oriente Médio, Anis sorri e diz: "Os franceses chegaram com o bastão em uma mão e os livros na outra. Os ingleses com o bastão em uma mão e o ópio na outra, essa é a diferença."

    Filho de industriais, Anis fez a vida fabricando esmaltes e batons após a carreira de medicina perder-se pelas noites de Coimbra, Milão e Barcelona. "Sou capaz de fazer qualquer cor, em minutos", diz, mostrando cartazes de sua marca, em inglês.

    OF Aleppo

    Sua fábrica foi fechada pelo Estado Islâmico quando os radicais tomaram o leste de Aleppo. "Eles não suportavam ver as mulheres bonitas, tive que parar de trabalhar."

    Empenhado em refazer sua casa e os carros, Anis agora passa o dia a dar ordens às suas ajudantes e a papear com os amigos que voltaram.

    Entre cafés, ouve música. Cantores sírios, espanhóis e o brasileiríssimo Roberto Carlos, de quem se declara fã. "A música 'Amigo' me toca muito forte, às vezes até choro quando a ouço", diz ele, que agora escuta suas canções prediletas no celular.

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