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    Gays presos na Tchetchênia relatam surras e tortura

    ANDREW E. KRAMER
    DO "NEW YORK TIMES", EM GROZNY (RÚSSIA)

    24/04/2017 07h00

    Devia ser uma noitada. Mas para o rapaz que chama a si mesmo de Maksim, assim como para dezenas de outros gays presos em uma batida neste mês na região russa da Tchetchênia, ela se transformou em quase duas semanas de surras e tortura.

    Maksim disse que tudo começou com uma conversa numa sala de bate-papo com "um velho amigo que também é gay", que sugeriu que eles se encontrassem em um apartamento. Quando Maksim chegou, porém, não foi recebido por seu amigo, mas por agentes que o surraram. Mais tarde o amarraram a uma cadeira, prenderam fios elétricos a suas mãos com clipes "jacaré" e começaram um interrogatório.

    "Eles gritavam 'Quem mais você conhece?'", disse Maksim, e lhe davam choques de vez em quando. "Era uma dor insuportável. Eu estava aguentando com minhas últimas forças", acrescentou. "Mas não lhes disse nada."

    James Hill - 19.abr.2017/The New York Times
    Ilya and Nohcho, gay men from Chechnya who use pseudonyms for safety, in a safe house in Moscow, April 19, 2017. The targeted, collective trapping and torturing of gays that began this month in Chechnya is a new, dark turn in the region's long history of rights abuses. "I don't blame him," Nohcho said of the friend who informed on him. "We are not heroes. We're just gay guys. They starve you. They shock you." (James Hill/The New York Times)
    Ilya e Nohcho (nomes fictícios), gays da Tchetchênia, em abrigo em Moscou

    Os gays nunca tiveram uma vida fácil na Tchetchênia. Mas a punição dirigida e coletiva à comunidade, que começou no mês passado sob o líder tchetcheno pró-Kremlin, Ramzan Kadyrov, é uma nova virada na longa história de abusos aos direitos humanos na região.

    O jornal de oposição "Novaya Gazeta" relatou a perseguição pela primeira vez, dizendo que pelo menos cem homens tinham sido presos e três mortos na operação. A organização de defesa dos direitos humanos Human Rights Watch confirmou essa informação.

    A batida foi amplamente condenada por governos ocidentais, pela ONU e grupos de direitos civis. Ativistas na Rússia montaram uma rede clandestina para retirar as vítimas da Tchetchênia e protegê-las de represálias potencialmente violentas de suas famílias e de outros. As vítimas usam nomes falsos em seus afazeres diários.

    O relato a seguir se baseia em entrevistas com Maksim, que tem 20 e poucos anos, e outros dois homens gays que foram detidos por agentes de segurança tchetchenos.

    A homossexualidade é tabu na Tchetchênia e nas áreas de maioria muçulmana ao redor, na região do Cáucaso, sul da Rússia.

    "Esta sociedade é altamente homofóbica", disse Ekaterina L. Sokiryanskaya, diretora de projeto na Rússia do Grupo de Crises Internacionais e uma autoridade sobre a Tchetchênia. "A homossexualidade é condenada. Acredita-se que o islamismo a considera um grande pecado."

    No entanto, antes da repressão, os gays na Tchetchênia podiam pelo menos ter uma vida social, embora muito "no armário", segundo Maksim. Eles se encontravam principalmente em salas de bate-papo privadas em redes sociais com nomes como Village ou O Que as Montanhas Não Dizem.

    "Quando dois gays se encontram, não dizem seus verdadeiros nomes", explicou Maksim. Os homens se reuniam em cafés ou apartamentos alugados por uma noite, disse ele. "Ninguém suspeitava de minha orientação sexual, nem mesmo meus melhores amigos."

    A repressão começou depois que o grupo GayRussia, sediado em Moscou, pediu autorização para realizar paradas do orgulho gay na região do Cáucaso, provocando protestos de grupos religiosos, relataram os homens. Na Tchetchênia, tornou-se algo ainda pior –uma limpeza "profilática" em massa de homossexuais, disseram os agentes de segurança aos gays quando os pegaram.

    Eles ficaram detidos por apenas um dia ou durante várias semanas, segundo a HRW e entrevistas com homens que depois escaparam da região. Alguns "voltaram para suas famílias semimortos por causa das surras", disse Tanya Lokshina, diretora de programa da HRW na Rússia.

    Entre as fatalidades documentadas pela organização estavam um homem que morreu durante tortura e dois outros que morreram em "assassinatos de honra" cometidos por parentes depois que a polícia os libertou.

    "A Human Rights Watch tem recebido inúmeros relatos de ataques dos serviços de segurança sob o controle de Ramzan Kadyrov, e são extremamente perturbadores", disse Lokshina. "Esta é mais uma oportunidade de reforçar a cultura do medo."

    A reação das autoridades tchetchenas à indignação global contra a repressão provocou nova incredulidade. Em uma entrevista por telefone, o porta-voz de Kadyrov, Alvi Karimov, disse que os relatos de uma repressão anti-gay deviam ser falsos, porque não existem esses homens na Tchetchênia.

    "Em Grozny, você alguma vez notou pessoas que, por sua aparência ou seu comportamento, parecem orientadas no sentido errado?", perguntou Karimov.

    "Uma política é desenvolvida para um problema", disse ele, referindo-se a uma reportagem que disse que as detenções eram uma política oficial. "Posso dizer oficialmente que não há política, porque não há um problema. Se houvesse um problema, haveria uma política."

    Em uma reunião televisada com o presidente Vladimir Putin, da Rússia, na quarta-feira (19), Kadyrov caracterizou como "difamatórias" as reportagens de que os serviços de segurança da Tchetchênia estariam perseguindo os gays.

    E na quinta-feira (20) o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, disse à imprensa que as autoridades russas não encontraram evidências de que a polícia tchetchena houvesse prendido gays.

    Mas rapidamente ficou claro para Maksim e os outros que as autoridades tchetchenas estavam aplicando a mesma tática usada pela Rússia e por Kadyrov para reprimir uma insurgência islâmica na região durante a última década.

    Agentes de segurança se posicionavam como gays, procurando parceiros no Village e em outras salas de bate-papo, ou convenciam os que já tinham capturado a atrair conhecidos, disseram os detidos. O medo se espalhou entre os gays da Tchetchênia. Ilya fugiu dias antes de a polícia aparecer em sua casa, como soube depois.

    As autoridades detiveram brevemente outro rapaz, que se identificou como Nohcho, depois que um amigo o delatou em um interrogatório.

    "Eu não o culpo", disse Nohcho sobre o amigo. "Não somos heróis. Somos apenas gays. Eles o fazem passar fome, lhe dão choques."

    Isso foi, ao que parece, essencialmente o que aconteceu com Maksim, que se correspondia com seu amigo gay havia algum tempo.

    "Um dia ele me convidou para tomar um drinque", disse Maksim. "E como nos conhecíamos há muito tempo não desconfiei que ele fosse capaz de uma coisa dessas."

    Depois de 11 dias ele foi entregue a um parente, que foi informado de que Maksim era gay. Os policiais disseram aos parentes dos detidos que, se tivessem honra, matariam os jovens, segundo Maksim e Ilya.

    O pai de Maksim ameaçou espancá-lo, mas se conteve quando o filho lhe mostrou os hematomas que já tinha. Então seu pai disse: "Eu deveria matá-lo".

    Temendo por sua vida, Maksim recorreu a um grupo de direitos gays, a Rede LGBT da Rússia, sediada em São Petersburgo, que criou um grupo de voluntários de emergência, 24 horas, para ajudar os gays a escapar da região.

    "Os gays na Tchetchênia e no norte do Cáucaso estão em perigo mortal", disse Igor Kochetkov, diretor da Rede LGBT da Rússia, em entrevista por telefone. "As pessoas cujos parceiros estão detidos têm todos os motivos para acreditar que serão presas. É muito difícil não dar nomes sob tortura."

    Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES CONÇALVES

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