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    Na Venezuela, grupos armados ajudam presidente a se manter no poder

    PATRICIA TORRES
    NICHOLAS CASEY
    DO "NEW YORK TIMES"

    24/04/2017 11h00

    Os motociclistas chegaram em um bando grande, com as motos rugindo, de casacos vermelhos e roupas escuras, alguns deles com os rostos cobertos, acelerando seus motores diante de mil manifestantes em Caracas. Jogaram bombas de gás lacrimogêneo para dispersar a multidão. E então, segundo testemunhas, sacaram armas e dispararam.

    Carlos Moreno, 17 anos, caiu ao chão, e uma poça de sangue se formou em volta de sua cabeça.

    "A massa encefálica dele estava saindo", recordou o líder comunitário Carlos Julio Rojas, que testemunhou o incidente fatal na capital venezuelana na quarta-feira.

    Christian Veron/Reuters
    Confronto durante protesto contra o governo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em Caracas
    Confronto durante protesto contra o governo do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, em Caracas

    Os homens uniformizados que atiraram em Moreno não eram membros das forças de segurança do governo, disseram testemunhas. Faziam parte dos bandos armados que assumiram um papel chave de implementadores das políticas do presidente Nicolás Maduro, em seu esforço para reprimir um movimento crescente de protesto contra seu governo.

    Conhecidos como coletivos, os grupos surgiram como organizações comunitárias pró-governo, algo que há muito tempo faz parte da paisagem da política venezuelana de esquerda. Civis que passaram por treinamento policial, os membros dos coletivos são armados pelo governo, dizem especialistas que os estudaram.

    Os coletivos controlam áreas extensas de território na Venezuela. São financiados em alguns casos por extorsão, venda de gêneros alimentícios no mercado negro e partes do narcotráfico. Em troca de sua lealdade, o governo ignora suas atividades irregulares.

    Agora os coletivos parecem estar exercendo um papel chave na repressão da dissensão.

    Centenas de milhares de manifestantes foram às ruas de Caracas e outras cidades para reivindicar a realização de eleições na Venezuela. Motivados pelo colapso econômico que provocou escassez de alimentos básicos e remédios, além de uma tentativa fracassada de esquerdistas para dissolver o Congresso nacional no mês passado, os manifestantes representam a maior ameaça aos governantes da Venezuela desde o golpe de Estado que em 2002 afastou do poder por pouco tempo o predecessor de Maduro, Hugo Chávez.

    Maduro reagiu enviando a Guarda Nacional, armada com canhões de água e balas de borracha, para dispersar as multidões. Mas, segundo especialistas e testemunhas, ao lado das forças de segurança também estão em ação os membros dos coletivos, que praticam uma intimidação mais violenta e, em muitos casos, mortal.

    "Os coletivos são os verdadeiros grupos paramilitares da Venezuela", disse Roberto Briceño-León, diretor do Observatório Venezuelano de Violência, organização sem fins lucrativos que monitora a criminalidade.

    Os coletivos não estão presentes apenas em manifestações de rua.

    Enquanto a dívida externa crescente e a queda nos preços mundiais do petróleo esvaziaram os cofres do governo venezuelano, este foi se voltando cada vez mais aos coletivos para implementar suas medidas. Desde disputas trabalhistas com sindicatos até em manifestações estudantis em universidades, os coletivos vêm se fazendo presentes em praticamente qualquer lugar onde o governo vê os cidadãos se insurgindo, dizem venezuelanos.

    Eladio Mata, líder de um sindicato de trabalhadores hospitalares, contou que no ano passado foi baleado por membros de um coletivo quando as negociações sindicais com o Hospital Universitário de Caracas chegaram a um impasse.

    Ele chegou ao hospital e encontrou membros do coletivo bloqueando o acesso à porta da frente. Teriam sido chamados pela direção do hospital. Funcionários tentaram ajudá-lo a abrir caminho à força, mas um membro do coletivo lhe deu um tiro nas costas. Em seguida ele foi arrastado a uma sala de cirurgia para ser submetido a uma operação de emergência.

    "Neste país é proibido discordar do governo", disse Mata.

    O pesquisador Oscar Noya, que estuda doenças infecciosas tropicais, contou que seu laboratório já foi depredado quase 30 vezes por membros de coletivos, que destruíram equipamentos e roubaram cabos de eletricidade.

    Noya acredita que os atos de vandalismo foram ordenados porque ele divulgou informações sobre epidemias de doenças infectocontagiosas que o governo não leva a público, especialmente o aumento nos casos de malária.

    Ele disse que suas denúncias repetidas às autoridades foram recebidas com silêncio e que os coletivos "alcançaram um nível de impunidade total".

    Os coletivos foram acusados de vários ataques a jornalistas que cobriam suas atividades nas ruas. Entretanto, em poucas entrevistas que concederam no passado, líderes dos coletivos negaram que seus grupos cometam atividades criminais e disseram que eles se ocupam principalmente em defender a causa da esquerda.

    Apesar de os coletivos atacarem as vozes que discordam do governo, para alguns venezuelanos pobres eles são uma fonte de ordem, algo que a população acabou por aceitar.

    Na quinta-feira (20), no bairro de La Vega, uma área de classe trabalhadora de Caracas agitada por protestos, moradores ficaram assistindo enquanto um grupo que identificaram como sendo de membros de um coletivo parava durante uma patrulha.

    A assistente administrativa Haidé Lira, 58 anos, moradora do bairro, disse que os choques entre manifestantes e coletivos assustam a população local. Ela deixou de ser a favor dos manifestantes. "Não se afasta um governo desse jeito", explicou.

    Sobre os coletivos, ela comentou: "Eles impõem a ordem onde há desordem. É verdade que são civis armados, mas o que se pode fazer neste mundo de ponta-cabeça em que vivemos?".

    Tradução de CLARA ALLAIN

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