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    Tabloides britânicos ganham força após incentivarem o 'brexit'

    KATRIN BENNHOLD
    DO "NEW YORK TIMES", EM LONDRES

    03/05/2017 17h00

    Tony Gallagher, editor do "The Sun", um dos tabloides mais ruidosos e influentes do Reino Unido, olha para o governo de cima, literalmente. Visto de sua Redação no 12º andar, toda de vidro, o Palácio de Westminster parece um castelo de brinquedo, algo para se divertir ou ignorar, à vontade.

    Gallagher também olha de cima para o editor do mais comedido "Times" de Londres, cujo escritório fica um andar abaixo e que faz questão de manter as cortinas fechadas. A hierarquia não passa despercebida a nenhum dos dois.

    No Reino Unido, depois da votação do "brexit", o poder dos tabloides é evidente. Sua circulação pode estar caindo e sua reputação, manchada por uma série de escândalos de grampo telefônico, mas enquanto o país se prepara para cortar laços com a União Europeia depois de uma campanha estridente e às vezes suja, políticos importantes cortejam os tabloides e temem sua ira. As emissoras de rádio e TV seguem sua pista, seja em tom ou em temas.

    Seus leitores, muitos deles com mais de 50 anos, trabalhadores que moram fora de Londres, parecem notavelmente com os eleitores que foram cruciais para o resultado do plebiscito do ano passado sobre a permanência na União Europeia.

    São esses cidadãos da "brexitlândia" que os tabloides pretendem representar, no coração do território inimigo: ocupando moradias palacianas em alguns dos bairros mais caros de Londres, eles se consideram embaixadas da Inglaterra mediana em Londres.

    Na campanha que antecede uma eleição rápida em 8 de junho, a maioria dos tabloides deverá atuar como os zelosos guardiões do "brexit" e como uma parte entusiástica do governo conservador da primeira-ministra Theresa May —apesar de a cidade que os abriga ter votado no outro sentido.

    Gallagher deixou sua marca em três dos jornais mais veementemente pró-"brexit" do Reino Unido. Foi editor de "The Daily Telegraph", um jornal conservador em formato standard, e vice-editor do mais mediano "Daily Mail", um dos principais rivais do "Sun", antes que Rupert Murdoch o comprasse, há quase dois anos. Juntos, esses três títulos são um motivo central pelo qual 80% da cobertura impressa da campanha do plebiscito se inclinaram pelo "brexit", segundo pesquisa da Universidade de Loughborough.

    No saguão de mármore e vidro do News Building, de 17 andares, onde fica o império de mídia de Murdoch, há uma pequena placa comemorativa da inauguração do prédio, em 2014, por Boris Johnson, então prefeito de Londres e hoje ministro britânico das Relações Exteriores.

    Johnson, de cabelos despenteados e divertido, tornou-se um dos principais arquitetos do "brexit" quando, quatro meses antes do plebiscito, colocou seu peso por trás de uma causa até então mais associada ao populista Partido da Independência do Reino Unido (Ukip). Mas sua principal contribuição ao "brexit" talvez remonte a mais de duas décadas.

    Correspondente em Bruxelas do "Daily Telegraph" no início dos anos 1990, Johnson foi creditado por colegas repórteres como pioneiro na cobertura eurocética da UE, que desde então se tornou a norma em grande parte da imprensa britânica. Com pouca consideração pela verdade —ele foi previamente demitido do "Times" de Londres por inventar uma citação—, Johnson escreveu sobre um esquema europeu para impor tamanhos padronizados de camisinhas e proibir os amados salgadinhos com sabor de lagostins, amados em seu país (ambas mentiras).

    "Boris inventou as notícias falsas", disse Martin Fletcher, um ex-editor de notícias internacionais do "Times" que esteve em Bruxelas pouco depois de Johnson. "Ele transformou o euroceticismo em uma forma de arte que todo editor de notícias em Londres passou a esperar."

    Antes do plebiscito, acrescentou Fletcher, "Boris fez campanha contra a caricatura de Bruxelas que ele mesmo inventou".

    Os tabloides dizem que apenas refletem as preocupações e os temores de seus leitores. Mas seus críticos dizem que envenenam o debate ao reagir aos piores instintos e preconceitos das pessoas, distorcendo os fatos e criando um esforço de propaganda que põe a intolerância na ordem do dia e molda a política.

    RESPEITADO E TEMIDO

    Eu enviei um e-mail a Gallagher pedindo uma entrevista em 29 de março, mesmo dia em que o Reino Unido enviou a carta aos líderes da UE em Bruxelas iniciando formalmente as negociações de dois anos para a saída da UE. Afirmei que era difícil compreender o Reino Unido hoje sem compreender os tabloides. Ele deve ter concordado.

    O elevador subiu, passando pelos escritórios de "The Wall Street Journal", da agência de notícias Dow Jones, de "The Sunday Times" e "The Times", até chegar à redação de "The Sun". Murdoch, o dono do jornal desde 1969, fica logo acima.

    No "Telegraph", Gallagher conquistou respeito por supervisionar a cobertura de um dos maiores escândalos políticos na história recente do Reino Unido: mais de duas dúzias de legisladores renunciaram depois que o jornal revelou o abuso generalizado de verbas e despesas que pagaram por, entre outras coisas, assentos de banheiro de carvalho branqueado e a eliminação de uma vala.

    Mas ele também é conhecido por perder a esportiva. "Mail Men" [Homens do Mail], um novo livro sobre o "Daily Mail", onde Gallagher passou grande parte de sua carreira, cita ex-colegas que o descrevem como uma "figura da morte" que "incute em seus repórteres o medo do diabo".

    Uma figura alta e magra, ele me conduziu até uma cadeira voltada para uma vista panorâmica de Londres. Durante toda a nossa conversa, foi cauteloso e não sorriu muito, mas foi educado. (Chamou o retrato dele no livro citado de "maldoso".)

    Sem mais, Gallagher apontou para uma escada e explicou que a Redação do "Sun" é a única coisa no edifício com acesso direto ao andar da administração. ("Eles sobem e descem essa escada o tempo todo", disse um jornalista mais tarde. "Eles" são Murdoch, quando está na cidade, e sua chefe britânica, Rebekah Brooks, ex-editora do "Sun" e do hoje defunto "News of the World", que foi acusada de ofensas criminosas ligadas a grampos telefônicos, mas foi inocentada por um júri em 2014).

    Gallagher ainda desfrutava os resultados de um recente duelo com o governo. O "Sun" tinha imprimido adesivos para carros e publicado uma reportagem especial de oito páginas sobre como um aumento nas contribuições de seguros nacionais para trabalhadores autônomos prejudicaria os "homens da van branca", o que significa membros da classe trabalhadora que, na opinião do "Sun", estavam sendo atingidos.

    Foi a primeira vez que os tabloides atacaram o governo de nove meses de May, e ela recuou rapidamente. "Eles levaram menos de uma semana", lembrou Gallagher.

    REFLETINDO OU INCITANDO?

    O "Sun" vende apenas 1,6 milhão de exemplares hoje (mais de 80% deles fora de Londres e na rica região sudeste do país), contra um pico de 4,7 milhões em meados dos anos 1990. Ele perdeu mais de 60 milhões de libras (cerca de R$ 240 milhões) no ano passado.

    Por que os políticos ainda têm tanto medo?

    "É fato que os jornais impressos, os jornais nacionais, definem a agenda aqui com muito mais eficácia que as emissoras, que são essencialmente uma mídia reativa", disse Gallagher, comentando que os jornais podem continuar atingindo certas questões.

    "Então, se você como jornal destacar o fato de que muitas de nossas leis são feitas na Europa, isso acaba penetrando na consciência nacional", disse ele.

    O Reino Unido faz muitas de suas leis, é claro. Mas é uma escolha de exemplo interessante. Um mais óbvio poderia ter sido a imigração.

    Pesquisa de uma ex-jornalista do "Times", Liz Gerard, mostrou que os tabloides martelaram a questão da imigração, com pelo menos 30 matérias de primeira página no "Daily Mail" nos seis meses anteriores ao plebiscito, e 15 no "Sun".

    As manchetes —"As fronteiras escancaradas da Grã-Bretanha", gritou o "Daily Mail"— muitas vezes tendiam a histriônicas. O Sun insinuou que as crianças refugiadas que chegavam ao Reino Unido mentiam sobre sua idade e deveriam passar por raios X dentais.

    "Diga-nos o dente", lia a manchete, num trocadilho com "verdade".

    Uma semana antes, eu tinha encontrado Kelvin MacKenzie, um ex-editor e colunista do "Sun" que mais tarde foi suspenso por chamar de "gorila" um astro mestiço do futebol. Ele disse que o jornal ainda refletia o "coração pulsante da Grã-Bretanha" e que o "brexit" foi vitorioso por causa da imigração "por mil milhas".

    Gallagher foi mais moderado.

    "Foi uma combinação de migração com soberania, sob o guarda-chuva maior de recuperar o controle, e um sentido de que, como país, não podíamos mais controlar nosso destino", disse ele.

    O "Sun", que recruta alguns funcionários recém-saídos dos colégios, tem um relacionamento quase pessoal com seus leitores, como se fosse um amigo confidente no bar.

    Outros jornais do grupo de Murdoch apoiaram a continuação na UE, notou Gallagher, refletindo a opinião de seus leitores. Entre esse grupo estava a edição escocesa do "Sun", que, assim como os eleitores escoceses, apoiou a permanência na UE.

    "Faz sentido comercial", disse Gallagher. Mas ele também foi um eurocético apaixonado durante anos.

    "Sem dúvida, alimentamos o entusiasmo das pessoas", afirmou. Mas acrescentou: "A ideia de que podemos de algum modo atrair leitores avessos para um ponto de vista que eles não teriam é ilusória".

    TÍTULOS 'CRIATIVOS'

    Eram 14h30 e Gallagher já tinha o boneco das páginas 3 a 29 do jornal do dia seguinte. Ele esperava que a primeira página abrisse com o funeral do policial morto no recente ataque terrorista a Westminster. A viúva e o filho do oficial apareceriam em público pela primeira vez, o que poderia dar fotos "emocionantes", disse o editor. Mas a decisão não seria tomada até a conferência diária da primeira página, às 17h.

    Gallagher disse que certa vez participou de uma reunião de pauta de "The New York Times" e não ficou impressionado.

    "Fiquei chocado com a simplicidade e como houve pouca discussão nessa reunião", explicou. "Não havia energia, nem criatividade. Não poderia ter sido mais aleatória e rotineira, a discussão. Foi horrível."

    As reuniões de pauta do "Sun" são muito mais "animadas", segundo ele. Está bem, disse eu. Poderia participar da reunião daquela tarde? Ele enrijeceu. "Não", disse. "É uma reunião sacrossanta." Uma quê?

    "Temos advogados na reunião", explicou, acrescentando: "Testamos nossas manchetes lá. É uma reunião muito criativa".

    Os tabloides britânicos se orgulham de sua "criatividade". Talvez a afirmação mais ousada na primeira página do "Sun" no ano passado tenha sido "A rainha apoia o 'brexit'", título mais tarde considerado enganoso pelo órgão regulador da imprensa britânica.

    O rei inconteste dos títulos "criativos" do "Sun" é MacKenzie, ex-editor do jornal. Algumas salas de reunião levam o nome de suas criações mais memoráveis, como "Gotcha" [Te peguei], sua visão do afundamento de um navio de guerra argentino durante a guerra das Malvinas/Falklands, que matou mais de 300 pessoas, e "Up yours Delors" [Enfia, Delors], dizendo a Jacques Delors, então presidente da Comissão Europeia, onde devia colocar uma proposta de nova moeda europeia.

    Eu havia encontrado MacKenzie uma semana antes, para lhe perguntar sobre esses títulos. "Suas primeiras páginas eram às vezes engraçadas e às vezes chocantes", comecei, e então ele me interrompeu: "E às vezes inverídicas!".

    Gallagher saiu para a "reunião sacrossanta", mas prometeu me informar mais tarde. Eu fui até a cantina no 14º andar.

    As garçonetes eram todas da Europa meridional. Um assistente de chef que passou por ali disse que a equipe da cozinha também era de maioria estrangeira. Ele não conseguia imaginar como iria funcionar depois do "brexit". "Vai ser um caos", disse.

    Eram 17h40. A edição da primeira página do dia seguinte tinha sido decidida. As fotos do enterro do policial foram consideradas "insatisfatórias" para uma página inteira. Um jogador de futebol, Ross Barkley, que tinha sido espancado em uma boate e mais tarde seria o tema da coluna do gorila de MacKenzie, era a matéria principal. O título: "Barkley's Spank" [A surra de Barkley].

    Meu tempo tinha terminado. Gallagher conservou a cara impassível a tarde inteira. A única vez em que eu achei que ele tinha se mexido na cadeira foi quando lhe perguntei qual era a opinião de seus filhos sobre o "brexit". Dois eram jovens demais para votar, disse ele, mas a mais velha, de 21 anos, escolheu ficar na UE.

    Ele me acompanhou até a porta. "Não me deturpe", disse.

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