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    Argentina terá ato contra alívio de pena a membros da ditadura militar

    SYLVIA COLOMBO
    DE BUENOS AIRES

    10/05/2017 02h00

    Organizações de direitos humanos da Argentina convocaram para esta quarta-feira (10), a partir das 17h, uma marcha que começará no Congresso e seguirá até a Praça de Maio, no centro de Buenos Aires, para pedir que a Corte Suprema volte atrás na decisão de aplicar a controversa "lei do 2 x 1" para casos de crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura militar (1976-1983).

    A "lei do 2 x 1" fora criada em 1994 (e derrogada em 2001) para obrigar a Justiça a diminuir o tempo de espera de acusados em prisão preventiva. Pelo texto, cada ano em que alguém ficasse detido esperando julgamento valeria por dois após a condenação. Na prática, reduzia à metade o período de prisão.

    Martín Zabala - 4.mai.2017/Xinhua
    Integrantes das Mães da Praça de Maio protestam contra a redução das penas de membros da ditadura
    Integrantes das Mães da Praça de Maio protestam contra a redução das penas de membros da ditadura

    A polêmica teve início quando a Corte Suprema resolveu usar essa lei, que já não estava mais em vigor, para aliviar a sentença do repressor Luis Muiña, 61, condenado em 2011 a 13 anos de prisão por sequestrar e torturar cinco pessoas no hospital Posadas, então um centro de detenção do regime.

    No texto original, porém, não estava previsto que a lei fosse aplicada em casos de crimes de lesa humanidade.

    Na Argentina, adota-se uma interpretação do Estatuto de Roma que prevê que crimes graves (sequestro, assassinato, tortura, roubo de bebês), quando praticados pelo Estado, são considerados de lesa humanidade e, portanto, não prescrevem. Se praticados por civis, com o tempo não podem mais ser julgados e punidos.

    A decisão da Corte pôs Luis Muiña em liberdade na semana passada e abriu precedente para que dezenas de outros repressores possam pedir o mesmo em seus casos. Hoje há cerca de 700 agentes da repressão cumprindo pena de regime fechado na Argentina —inclusive o último presidente do regime militar, Reynaldo Bignone, 89.

    Entre os que pediram para receber o benefício está o médico Jorge Luis Magnacco, o chamado "obstetra da Esma [Escola Superior da Marinha]", numa referência ao centro de tortura onde ele realizava partos das prisioneiras —Magnacco foi condenado por roubo de bebês.

    Também estão nesta lista o militar Juan Antonio Azic, responsável por se apropriar de Victoria Donda, que hoje é deputada, e Alfredo Astiz, conhecido como "anjo da morte", que cumpre pena de prisão perpétua por sequestros e torturas no mesmo centro clandestino.

    USO POLÍTICO

    A controvérsia ganhou cores políticas porque a decisão da Corte, de 3 votos a 2, teve a participação decisiva dos dois chamados "juízes de Macri": Carlos Rosenkrantz y Horacio Rosatti.

    Ambos foram indicados por decreto pelo presidente assim que ele assumiu, em dezembro de 2015. Pressionado pela opinião pública, Macri recuou e enviou os nomes ao Congresso.

    No entanto, como este é um ano eleitoral (renova-se metade do Congresso em outubro), o governo quer evitar ver sua imagem associada a restrições nas leis de direitos humanos ou na demora dos julgamentos em andamento.

    Macri pediu, nesta terça-feira (9), que fosse enviado ao Congresso um projeto de lei para restringir a aplicação da "lei do 2x1". A oposição, porém, crê que esse posicionamento do governo seja oportunista. O presidente do bloco de deputados peronistas, maioria no Congresso, Héctor Recalde, disse considerar a decisão da Corte como "política" e que o macrismo, na verdade, apoia a anistia aos repressores.

    "A Corte seguiu a linha do governo Macri de negação do genocídio, de desqualificação da luta popular pela vigência dos direitos humanos e a interrupção das políticas de reparação", declarou. Acrescentou, ainda, que a bancada kirchnerista pedirá o julgamento político dos juízes designados por Macri.

    Para o advogado Luis Moreno Ocampo, que participou do Julgamento das Juntas, nos anos 1980, quando foram condenados tanto repressores como guerrilheiros, a Justiça e o governo hoje deveriam estar preocupados com outra coisa.

    "Os repressores estão muito velhos. Logo morrerão e, com eles, a verdade, os arquivos, a explicação sobre quem desapareceu e como. Em vez de discutir se julgar ou não julgar, o que deveria ser priorizado agora é a verdade", disse à Folha.

    Moreno Ocampo propõe que a "lei do 2 x 1" seja substituída por uma "espécie de delação premiada". "Quem quiser indulto ou redução de pena que diga onde estão os corpos e, afinal, o que houve com os desaparecidos."

    DEFESA DOS REPRESSORES

    Já entre os defensores dos ex-repressores, o retorno da "lei do 2x1" vem em boa hora. Para Gerardo Hardy, que preside a Associação Justiça e Concórdia, "é como se estivéssemos voltando a um país com leis normais".

    "O que tivemos no kirchnerismo foram leis revanchistas e julgamentos decididos por aqueles que antes praticavam o terrorismo", afirmou à Folha, referindo-se aos montoneros e a outros grupos que ofereceram resistência à ditadura.

    Composta por advogados que defendem ex-repressores, a associação que Hardy preside crê que o Estatuto de Roma é aplicado de forma equivocada pela Justiça argentina.

    "Esse estatuto foi formulado nos anos 1990, portanto não pode ser aplicada de forma retroativa. Somos a favor de que se deixe de perseguir pessoas por atos cometidos há 40 anos, pessoas que já são nonagenárias e estão presas por ódio."

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