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    Governo Trump

    Opinião

    Essência do impeachment de Trump nos EUA é política

    GREG WEINER
    ESPECIAL PARA O "NEW YORK TIMES"

    21/05/2017 02h00

    A conversa fervilhante sobre impeachment que gira em torno do presidente dos EUA, Donald Trump, se concentra em se ele cometeu um crime ao pedir que James Comey, então diretor do FBI, encerrasse uma investigação sobre Michael Flynn, ex-conselheiro de Segurança Nacional.

    Da perspectiva do direito penal, as perguntas resultantes, que se referem principalmente à intenção do presidente ao fazer o pedido, são inevitáveis. Da perspectiva do ato decididamente político do impeachment, elas são irrelevantes. O objetivo do impeachment não é punitivo. É profilático.

    Spencer Platt - 10.mai.2017/Getty Images/AFP
    Manifestante pede impeachment do presidente Donald Trump em frente à Trump Tower, em Nova York
    Manifestante pede impeachment do presidente Donald Trump em frente à Trump Tower, em Nova York

    O direito penal olha para trás, na direção das ofensas cometidas. O objetivo do impeachment não é exercer vingança. É proteger o público contra futuros atos de imprudência ou de abuso.

    Consequentemente, a questão ao decidir se Trump é passível de impeachment é menos o que aconteceu no Salão Oval entre ele e Comey do que o que aqueles acontecimentos dizem sobre o que acontecerá em situações semelhantes no futuro.

    Esse não é um caso para um impeachment fortuito. Pelo contrário: já que é mais difícil prever atos futuros do que provar o que já aconteceu, tal critério pode ser mais difícil de cumprir.

    Nossa tendência a ler o poder de impeachment de uma maneira excessivamente legalista, o que é ratificado por 230 anos de extrema timidez em sua utilização, obscurece a natureza política, mais que a jurídica, do dispositivo.

    A Constituição aplica o impedimento presidencial a "traição, suborno ou outros crimes e delitos graves". A famosa expressão final não se refere a infrações como invasão de domicílio ou vadiagem. Se o fizesse, o impeachment poderia ser usado para transgressões eventuais, o que nenhum elaborador da Constituição pretendia.

    A frase remonta, no constitucionalismo americano, à proposta de George Mason (1725-1792) de tornar o presidente passível de impeachment não só por traição e suborno —a fórmula original da Convenção Constitucional—, mas também pelo que chamou de "má administração". James Madison (1751-1836), seu colega de Convenção, objetou contra a vaguidão do termo e o substituiu por "crimes e delitos graves".

    A intenção de Mason foi claramente delinear uma categoria política, algo que Alexander Hamilton (1757-1804) —que não se retraiu na defesa do Poder Executivo— reconheceu em "Federalist 65" [ensaio federalista de 1788], no qual diz que o impeachment se aplica a infrações "de uma natureza que possa com peculiar propriedade ser denominada POLÍTICA, por se relacionarem a agressões cometidas imediatamente contra a própria sociedade".

    Note o objetivo para o qual ele disse que o impeachment deveria ser aplicável: "O senhor Madison considerou indispensável que algum dispositivo deveria ser criado para defender a comunidade contra a incapacidade, negligência ou perfídia do Magistrado Chefe".

    A tendência a ler "crimes e delitos graves" de forma muito literal é um dos motivos pelos quais se fez a 25ª Emenda, que trata da incapacidade presidencial como se ela exigisse um mecanismo constitucional especial, quando na verdade já existia um. É também por isso que os EUA alcançaram 23 décadas sem um impeachment e condenação de fato, apesar da renúncia de Richard Nixon.

    OLHAR NO FUTURO

    A natureza política do impeachment não significa que seja meramente uma disputa de poder. Menos ainda se destina a reacender disputas eleitorais. O ponto é que, como o objetivo é "defender a comunidade", mais que punir alguém, um julgamento criminal não se aplica.

    O caráter profilático do poder de impeachment ainda requer uma infração, é claro. Mas a infração indica um padrão com base no qual se pode prever o futuro comportamento. A ideia não é humilhar o presidente ou fazê-lo sofrer pela perda de seu cargo. É proteger o público contra sua negligência ou abuso.

    Nesse sentido, não importa se Trump pretendia explicitamente obstruir a Justiça quando supostamente tentou convencer Comey. A determinação que o Congresso deve fazer é qual é o nível de confiança que se pode ter de que Trump não abusará das alavancas do poder de maneiras semelhantes se ele continuar a detê-las.

    Em outra frente, há pouca dúvida de que ele não cometeu crime quando vazou informação sigilosa para o embaixador russo. Mas essa também não é a questão colocada pelo impeachment. A questão é se a sociedade precisa ser protegida de conduta semelhante no futuro.

    Há argumentos razoáveis de que, apesar de todas as controvérsias, o presidente pode demonstrar a disciplina que o cargo exige. Outros poderão dizer que os atos de que ele é acusado não ocorreram, não ocorreram do modo como foram relatados ou, se ocorreram, não constituem crimes ou delitos graves.

    A evidência deve ser reunida cuidadosamente, processo em que o ex-diretor do FBI Robert Mueller, como conselheiro especial, ajudará de modo considerável. Mas Mueller não é substituto para as responsabilidades independentes do Congresso, de investigação e sóbria avaliação.

    A questão é com quais critérios os congressistas devem conduzir esse trabalho, e essa questão oferece a chance de corrigir a suposição errônea segundo a qual os presidentes podem perder o direito à confiança do público somente se cometerem o que a lei reconhece como crime.

    Esse é um parâmetro fraco para uma República madura estabelecer. Não foi o que uma República então recém-nascida estabeleceu. E é por isso que a ideia de que o debate sobre impeachment é simplesmente uma perseguição política a um homem tecnicamente inocente de um crime literal não apenas se antecipa à investigação. Ela não leva em conta o objetivo constitucional.

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