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    Após eleição, Reino Unido inicia uma longa viagem de volta à Europa

    MARTIN SANDBU
    DO FINANCIAL TIMES

    09/06/2017 17h00

    Quando Theresa May se tornou primeira-ministra do Reino Unido, em julho do ano passado, seu discurso de posse provou que ela compreendia que muitos britânicos haviam optado por sair da União Europeia porque se sentiam frustrados com as mudanças econômicas que haviam deixado muitos deles para trás –ainda que identificassem incorretamente a causa real dessa frustração. A origem da humilhação sofrida por May na eleição geral da quinta-feira é que ela não agiu com relação a essa percepção, enquanto seu oponente, o trabalhista Jeremy Corbyn, o fez.

    May solicitou explicitamente um mandato pessoal que expressasse a confiança do eleitorado em sua liderança enquanto ela buscava implementar sua interpretação desnecessariamente dura do "brexit" –sair do mercado unificado e da união alfandegária, com a ameaça de deixar a União Europeia sem qualquer negociação, caso necessário–, e esse apelo foi rejeitado vigorosamente pelos eleitores.

    Corbyn no geral tratou o "brexit" com negligência benigna, oferecendo, em lugar disso, propostas políticas práticas, e ao alcance dos políticos britânicos, para combater as frustrações econômicas dos eleitores, quer o país continue parte da União Europeia, quer não, e isso resultou na maior votação conquistada pelo Partido Trabalhista desde 2001.

    (A pesquisa de lorde Ashcroft sobre os resultados da eleição aponta para algo parecido, da perspectiva do eleitorado: a maioria daqueles que votaram nos conservadores o fizeram por confiar que o partido ou sua líder faria o melhor trabalho possível na negociação do "brexit"; já outros eleitores apontaram para as propostas políticas e os princípios de seus partidos como motivo principal para o voto.)

    O resultado é um Parlamento dividido, no qual nenhum partido tem maioria. Um governo minoritário deve ser formado, portanto, já que os políticos britânicos continuam a não engolir a ideia de coalizão –as tradições do passado custam a morrer, a despeito da estabilidade propiciada pela coalizão entre conservadores e liberais democratas que governou o país entre 2010 e 2015; e o fato de que uma coalizão talvez seja o melhor caminho para criar consenso em torno de grandes questões nacionais como o "brexit" continua a ser desconsiderado.

    Sem um consenso desse tipo, o que a eleição significa para a forma que o "brexit" pode assumir? O que fica claro é que a versão de May –separação clara das estruturas de mercado e instituições da União Europeia, seguida por um acordo de livre comércio– se tornou menos provável. Duas opções se tornaram mais realistas, ao mesmo tempo: paradoxalmente, a de uma saída dura da União Europeia, sem qualquer acordo entre o país e a organização; contraposta à de um "brexit" suave que manteria o Reino Unido dentro do mercado unificado ou da união alfandegária, ou de ambos.

    Sair da União Europeia em clima hostil se tornou mais provável por conta da aritmética altamente instável do Parlamento. A autoridade pessoal de May foi pulverizada. Um governo minoritário pode ser fraco, incapaz de tomar decisões duras, e é possível que seja forçado a renunciar, com a convocação de uma nova eleição. O novo governo estaria vulnerável à morte, renúncia ou deserção de cada membro de sua bancada –e tudo isso enquanto os ponteiros do relógio correm para o final do prazo de dois anos para a negociação de um acordo com a União Europeia.

    Ainda mais intrigante, caso o oscilante sistema político britânico evite a paralisia e consiga negociar um acordo para sair da União Europeia, é que o pacto resultante deve ser muito mais brando do que aquilo que May oferecia como "melhor solução possível", até a noite de quinta-feira. O motivo é que não existe maioria no Parlamento para garantir um "brexit" duro; todas as combinações possíveis de bancadas para a formação de um governo dependem de partidos cujo compromisso implícito ou explícito é o de manter o Reino Unido muito mais próximo da União Europeia.

    É mais fácil perceber esse fenômeno na esquerda. Embora Corbyn nunca tenha sido grande fã da União Europeia, sua campanha sugere que a melhor descrição para seus sentimentos quanto à união é "indiferença", e não ceticismo. Ele vem evitando há muito tempo atribuir à imigração a culpa pelos baixos salários dos britânicos, e se concentra em lugar disso em regulamentações trabalhistas que permitem exploração e encorajam os empregadores a escolher trabalhadores imigrantes, mais subservientes.

    Não deve ser difícil para Corbyn apoiar, e defender, um "brexit" ao estilo norueguês, que mantenha o Reino Unido como parte do mercado unificado. Os possíveis parceiros parlamentares de um governo de minoria liderado pelos trabalhistas –sejam os liberais democratas, os nacionalistas escoceses ou os verdes– são todos fortemente favoráveis à Europa, e exigiriam que o país continue parte do mercado unificado e da união alfandegária.

    Os números dessa potencial coalizão ficam um pouco aquém de uma maioria, especialmente porque os parlamentares do Sinn Féin norte-irlandês não ocupam seus postos em Westminster, por uma questão de princípio. Mas a proximidade entre Corbyn e o movimento republicano irlandês desperta uma possibilidade intrigante: será que não chegou a hora de os parlamentares do Sinn Féin ocuparem seus assentos, mesmo que a contragosto, a fim de apoiá-lo, em troca da promessa de um "plebiscito de fronteira" sobre a unificação da Irlanda?

    Por enquanto, porém, May está tentando se manter no poder como líder de um governo conservador minoritário, com apoio do Partido Democrático Unionista da Irlanda do Norte. E a mesma lógica favorável à União Europeia se aplica, nesse caso, embora de modo menos escancarado. Os unionistas apoiaram a saída da União Europeia, mas perceberam tardiamente as enormes complicações que qualquer coisa que não o mais brando dos "brexits" causará na Irlanda do Norte.

    A tradição do partido é negociar seu apoio ao governo em benefício daquilo que vê como o interesse da Irlanda do Norte, como explica um estudo (publicado em 2015, ou seja, antes do "brexit") de autoria da professora Sophie Whiting, da Universidade de Bath.

    Determinar qual exatamente é esse interesse passa a ter grande importância, portanto. A melhor resposta é consultar a plataforma do Partido Democrático Unionista para a eleição (as prioridades sobre o "brexit" estão na página 18). Tudo que a plataforma propõe funcionaria melhor caso o Reino Unido continue parte do mercado unificado. O único ponto que poderia conflitar com a união alfandegária –"progresso quanto a novos acordos de livre comércio com o resto do planeta"– é vago a ponto de permitir um compromisso envolvendo participação nos novos acordos de comércio entre a União Europeia e mercados importantes como o Canadá e o Japão.

    O sumário que o partido unionista oferece é o seguinte: "Interessa a todos na Irlanda do Norte que as negociações entre o Reino Unido e a União Europeia transcorram bem e que os elementos relacionados ao comércio comecem a ser tratados o mais cedo possível. Quanto mais fortes e mais positivos os acordos obtidos, especialmente quanto ao relacionamento comercial e alfandegário, melhor será para as circunstâncias específicas da Irlanda do Norte".

    Isso aponta claramente para um modelo norueguês, com o acréscimo de participação na união alfandegária, e sugere que o Partido Democrático Unionista usará o poder que sua nova posição lhe confere para resistir a uma separação da União Europeia, assim que a organização perceber as fricções que isso criaria na fronteira entre as duas Irlandas.

    Sair da União Europeia e continuar participando do mercado unificado e da união alfandegária europeus - mas sem qualquer influência sobre as regras que os governam - traria rapidamente a questão de por que, então, o Reino Unido está pensando em sair. Parece difícil que um acordo como esse seja legitimado sem novo referendo ou eleição. E o resultado de uma nova votação pode ser a preferência por permanecer na União Europeia, afinal.

    Graças à insistência da primeira-ministra em que "sair da União Europeia significa sair da União Europeia", subitamente parece ter surgido um tortuoso caminho de volta à Europa.

    Eleições no Reino Unido - Mapa com resultados da votação

    Tradução de PAULO MIGLIACCI|

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