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    Governo da Rússia usa memória da Segunda Guerra para legitimar abusos

    ANDREW HIGGINS
    DO "NEW YORK TIMES", EM PODOLSK (RÚSSIA)

    23/06/2017 07h00

    Como antigo diretor de uma fábrica na União Soviética, Vladimir Melikhov sobreviveu às brutais guerras entre empresas dos anos 1990 e depois fez fortuna no ramo da construção.

    Agora, ele dedica sua energia e dinheiro a algo que, na Rússia do presidente Vladimir Putin, se tornou uma empreitada realmente arriscada: pesquisar sobre a história da Rússia.

    James Hill - 6.jun.2017/The New York Times
    Vladimir Melikhov at his museum, which focuses on the persecution that followed Russia’s 1917 revolution, in Podolsk, Russia, June 6, 2017. Melikhov’s focus on the history of “anti-Bolshevik resistance” has enraged the authorities. Fonte: James Hill/The New York Times
    Vladimir Melikhov em seu museu, em que expõe perseguição de bolcheviques a opositores

    Melikhov fundou um museu dedicado à memória da "resistência antibolchevique", e isso o leva a encarar um tópico especialmente polêmico: o motivo para que muitos cossacos e outros cidadãos soviéticos perseguidos tenham, ao menos inicialmente, recebido positivamente a invasão da União Soviética pela Alemanha de Hitler, em junho de 1941.

    O museu, que ocupa um edifício de três andares que Melikhov fez construir em um terreno de sua propriedade em Podolsk, ao sul de Moscou, não tenta glorificar os colaboradores dos nazistas.

    Mas enraiveceu as autoridades ao adotar como foco a perseguição incansável que surgiu depois da revolução bolchevique na Rússia, em 1917, criando terreno fértil para a ação dos traidores da União Soviética em uma guerra que custou a vida de 25 milhões habitantes do país.

    "O que eles realmente não gostam é que levo as pessoas a pensar sobre o que aconteceu no passado e o que está acontecendo hoje", disse Melikhov.

    Como resultado, ele foi denunciado como traidor pela TV estatal, guardas de fronteira russos rasuraram seu passaporte para impedi-lo de deixar o país, e o empresário teve de enfrentar uma série de acusações criminais aparentemente forjadas.

    Na terça-feira (20), um tribunal de Podolsk o considerou culpado de posse ilegal de armas de fogo e o sentenciou a um ano de "liberdade restrita" –prisão domiciliar ou outras formas de limitação de seus movimentos.

    A hostilidade do Estado russo a Melikhov é um indicador de o quanto a história da Segunda Guerra Mundial, conhecida pelos russos como Grande Guerra Patriótica, é um tópico sensível –especialmente em um momento no qual Putin e seus aliados se referem constantemente ao conflito a fim de fortalecer sua legitimidade.

    Eles se retratam como verdadeiros herdeiros dos patriotas da era da guerra, e vilipendiam seus inimigos –como Alexei Navalny, líder de uma campanha de combate à corrupção que organizou protestos nacionais contra o Kremlin em 12 de junho– definindo-os como vendidos comparáveis aos colaboradores dos nazistas.

    Com o abandono do comunismo e o capitalismo liberal em geral desacreditado como alternativa, a luta vitoriosa da União Soviética contra o nazismo, entre 1941 e 1945, se tornou uma fundação intocável da nova ideologia do Estado, construída em torno de um relato purificado, de sacrifício patriótico, disciplina e unidade nacional.

    "O mito da Grande Guerra Patriótica é o mito de fundação da Rússia contemporânea, pós-1991", disse Serhii Plokhii, professor de História da Universidade Harvard nascido na Rússia.

    "Qualquer coisa que desafie o mito, compreendido como a vitória do povo russo unido contra o Ocidente hostil, ou que adicione nuances cinzentas ao retrato em branco e preto daquela batalha entre o bem e o mal, é rejeitado ou atacado."

    Melikhov não é o único alvo de críticas. Um comitê estatal em Moscou recentemente vetou a decisão de um comitê acadêmico de São Petersburgo que conferiu um título de doutorado ao historiador Kirill Alexandrov.

    Sua dissertação, sobre o Comitê de Libertação dos Povos da Rússia, uma organização estabelecida em 1944 com apoio da Alemanha para mobilizar oposição contra o regime de Stálin, foi considerada insuficientemente patriótica.

    Melikhov acredita que seu principal crime, pelo menos na visão das autoridades, não seja apenas o tratamento objetivo conferido a traidores geralmente denegridos, pelo seu museu em Podolsk e por outro museu que ele criou perto de Rostov, no sul da Rússia.

    Problema maior, segundo Melikhov, é que qualquer discussão aberta sobre as escolhas que a Rússia fez durante a guerra solapa os esforços de Putin para unir a Rússia, em torno do heroísmo do passado e de sua hostilidade aos inimigos externos e internos que, na visão difundida pelo Kremlin, estão sitiando o país.

    "A União Soviética desabou, mas o sistema soviético de comando e o pensamento daquela era continuam", disse Melikhov. "Havia monopolização do poder político, monopolização do poder econômico, monopolização da mídia de massa, monopolização da sociedade civil. Hoje, os elementos básicos do sistema soviético estão todos sendo reconstruídos."

    As provas apresentadas contra Melikhov em seu julgamento consistiam de uma enferrujada arma de fogo do século 19, parte do acervo de seu museu, e uma pilha de balas incompatíveis com qualquer arma de seu acervo. Melikhov disse que a munição foi plantada pelos investigadores.

    "Lutei contra muitos bandidos nos anos 1990, mas agora é ainda pior. Não há como lutar contra as autoridades", ele disse em uma entrevista em sua propriedade, um complexo murado contendo diversas edificações de tijolos, jardins luxuriantes e um lago, tudo isso construído sobre um aterro sanitário da era soviética.

    Não fosse seu interesse por História, Melikhov, 60, se enquadraria bem à visão de Putin sobre a Rússia ressurgida, construída em torno de valores tradicionais e patriotismo enérgico.

    Melikhov é descendente de cossacos, os rústicos cavaleiros que protegiam as fronteiras do império russo e cujos descendentes estiveram na vanguarda de diversas causas nacionalistas desde o colapso da União Soviética em 1991. Ele também é cristão ortodoxo e construiu uma bela igreja de madeira ao lado de sua casa em Podolsk.

    Mas anos de trabalho coligindo e lendo velhos livros e documentos convenceram Melikhov de que aquilo que Putin e seus aliados na Igreja Ortodoxa celebram como tradição russa representa uma grave distorção do passado.

    Ele afirmou que embora Putin tenha ajudado a remover a suspeita que existia na era soviética quanto aos cossacos, que em geral se alinharam às as forças antibolcheviques na guerra civil russa de 1917 a 1922, ele esqueceu o cerne do credo cossaco.

    "O valor mais importante para um cossaco sempre foi sua liberdade", disse Melikhov.

    Essa leitura da tradição dos cossacos, que muita gente ainda associa a ataques antissemitas e a serviço brutal em favor da expansão do Império Russo, na era czarista, ajudou Melikhov a conquistar apoio improvável da parte dos liberais russos.

    Um de seus maiores fãs é Andrey Zubov, historiador liberal demitido de seu posto em um prestigioso instituto moscovita depois de comparar a anexação da Crimeia por Putin, em 2014, a anexações de territórios decretadas por Hitler em 1939. Com isso, Zubov rapidamente conquistou lugar na lista de "traidores" preparada pelos partidários de Putin.

    "O comunismo está obviamente morto como ideologia", ele disse. "Não existe comunismo. Mas existe uma maneira soviética de pensar, uma forma soviética de imperialismo que sobrevive e que as autoridades querem proteger contra os fatos históricos."

    Melikhov disse que o mais recente processo contra ele foi orquestrado não pelos procuradores locais de Podolsk, mas pelo Serviço Federal de Segurança em Moscou, a ala de inteligência interna do velho KGB da era soviética, depois que o empresário expressou apoio público a um partido inimigo do Kremlin na eleição legislativa do ano passado.

    Ele também se opôs à anexação da Crimeia, o que é o teste básico de suposta traição –rótulo que Melikhov diz estar sendo aplicado a todos aqueles que apenas discordam publicamente do Kremlin.

    É isso, ele diz, que torna seus dois museus tão ameaçadores: eles levam os milhares de russos comuns que os visitam a pensar na história de seu país e a questionar rótulos simplórios como patriota e traidor. E também ecoam questões que historiadores profissionais vêm propondo, discretamente, sobre os relatos oficiais da guerra.

    As versões oficiais tendem a minimizar a importância do pacto entre Stálin e Hitler em 1939, o expurgo homicida do líder soviético contra os oficiais das forças armadas de seu país nos anos 30, e a perseguição incansável a supostos inimigos internos do regime antes da invasão nazista.

    Em um comentário no livro de visitantes do museu, um deles escreveu: "Obrigado aos criadores e curadores do museu pela oportunidade de observar as páginas de nossa história que as autoridades oficiais tentam ocultar de nós."

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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