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    No passado cidade modelo, Hong Kong agora tem problemas

    KEITH BRADSHER
    DO 'NEW YORK TIMES', EM HONG KONG

    01/07/2017 02h00

    Quando Hong Kong voltou a ser parte da China, duas décadas atrás, a cidade era vista como modelo daquilo que o país poderia um dia se tornar: próspera, moderna, internacional, com amplas proteções conferidas por lei.

    Havia ansiedade sobre a sobrevivência de um lugar merecedor dessa descrição como parte da China autoritária. Mas mesmo depois que Pequim começou a interferir com as liberdades da antiga colônia britânica, sua reputação como uma das cidades mais bem administradas da Ásia persistiu.

    Os trens cumprem seus horários. A criminalidade e os impostos são baixos. O panorama da cidade deslumbra, com arranha-céus cada vez mais altos.

    Isso tudo continua a ser verdade. Mas à medida que se aproxima o 20º aniversário da restituição, no sábado (1º), a percepção de Hong Kong como algo especial –uma vibrante encruzilhada entre Ocidente e Oriente que a China talvez viesse a querer emular– está desaparecendo rapidamente.

    Qin Qing - 28.jun.2017/Xinhua
    Edifícios iluminados em Hong Kong para comemorar 20 anos de domínio chinês
    Edifícios iluminados em Hong Kong para comemorar 20 anos de domínio chinês

    Disputas incessantes entre a liderança da cidade, apoiada por Pequim, e a oposição pró-democracia tornaram o governo incapaz de tomar decisões difíceis e concluir importantes projetos de construção.

    Apanhadas entre modos rivais de governo –as imposições de Pequim e as demandas dos moradores locais–, as autoridades permitiram que os problemas supurassem, entre os quais uma crise na habitação popular, deficiências na educação e atrasos na construção de uma ferrovia de alta velocidade.

    Muita gente diz que a luta sobre o futuro político de Hong Kong paralisou a cidade, e talvez a tenha condenado ao declínio. Como resultado, ela deixou de ser um modelo para o futuro da China e passou a servir como exemplo cautelar –para Pequim e seus aliados, sobre os perigos da democracia; para a oposição, sobre os perigos do autoritarismo.

    "Há um senso de futilidade cada vez mais intenso", afirma Anson Chan, que ocupava o segundo posto na hierarquia do governo de Hong Kong nos anos que precederam e sucederam a devolução do território à China.

    Ela culpa a interferência de Pequim pelos males da cidade.

    "Temos um enorme gigante à nossa porta", diz Anson, "e o resto do mundo não parece questionar o que esse enorme gigante faz".

    Outros propõem uma distribuição mais ampla de culpas. Apontam para a relutância da oposição em aceitar compromissos e para políticas que enfraquecem os partidos políticos, entre os quais distritos eleitorais que elegem múltiplos representantes e permitem que candidatos radicais vençam com uma minoria dos votos.

    "Esse tipo de atmosfera política desordenará muitas das iniciativas que podem surgir", disse Anna Wu, que é membro do conselho executivo, o gabinete do território.

    Uma estação de ferrovia de alta velocidade planejada para Hong Kong continua inacabada –anos depois que todas as outras grandes cidades chinesas passaram a ser conectadas por trens-bala.

    Hong Kong está abaixo apenas de Nova York e Londres, como centro financeiro mundial, mas não abriga museus de primeira linha. Com 15 anos de atraso, a construção de um polo cultural cujo objetivo era competir com o Lincoln Center nova-iorquino foi enfim iniciada, mas o desembolso das verbas aprovadas pelo legislativo para o projeto pode enfrentar obstáculos nos próximos dias.

    Queixas generalizadas sobre escolas obcecadas com testes, que deixam seus alunos mal preparados para concorrer com os estudantes da China continental, não resultaram em uma reforma na educação. E o governo tampouco encontrou meio de enfrentar a ira pública mal contida contra a disparada nos preços dos aluguéis e dos imóveis residenciais.

    Hong Kong no passado era conhecida pela velocidade e eficiência com que construía comunidades planejadas, com ampla habitação pública, a intervalos de alguns poucos anos. Mas não conseguiu mais fazê-lo desde que o Reino Unido devolveu o território ao controle da China, em 1º de julho de 1997.

    Hong Kong continua a ser uma joia, de muitas maneiras, um lugar que é difícil não amar e que seus 7,4 milhões de moradores relutam em deixar.

    Fileiras estreitas de arranha-céus à beira-mar se erguem diante de encostas arborizadas protegidas como parques. O aço e o concreto desaparecem em meio a trilhas repletas de verde que contornam lagos e cascatas, e tudo isso não muito longe do cavernoso e eficiente aeroporto da cidade, parte de uma renomada rede de transporte formada por metrôs, ônibus, bondes e balsas.

    Mas o aeroporto foi construído pelos britânicos antes de sua partida. E o mesmo se aplica às instituições que realmente distinguem a cidade: os tribunais independentes, o funcionalismo amplamente respeitado, a imprensa livre.

    Tudo isso foi preservado sob a fórmula de "um país, dois sistemas" que prometia grande autonomia a Hong Kong quando o Reino Unido devolvesse o território à China. Mas as instituições foram enfraquecidas pela crescente interferência do Partido Comunista nos assuntos da cidade. As pessoas que são percebidas como contrárias aos interesses do partido sofrem intimidação, e algumas foram até sequestradas.

    O Movimento Guarda-Chuva, que exige eleições livres e tomou o controle das ruas do centro da cidade por 12 semanas no final de 2014, é apenas um a memória distante. Mas o ressentimento e o rancor quanto à China continental estão se espalhando, agora que a evolução democrática de Hong Kong foi bloqueada.

    No segundo trimestre, uma nova executiva chefe foi selecionada para o território: Carrie Lam, escolhida por um comitê de 1.200 moradores, a maioria dos quais aliados de Pequim que seguiram suas instruções.

    Os predecessores de Lam preferiam contornar as questões mais duras, por medo de ofender a liderança chinesa e despertar a ira do público. Ao mesmo tempo, dizem críticos, a prestação de contas limitada permitiu que a incompetência e a corrupção se espalhassem entre as autoridades. Os dois principais funcionários de uma administração anterior foram julgados por corrupção.

    Os aliados de Pequim contam com maioria no legislativo porque metade dos 70 assentos são ocupados por pessoas selecionadas por grupos de interesses em geral leais ao governo da China continental. Mas a outra metade dos representantes é eleita, e legisladores que favorecem mais democracia conquistaram a maioria dos assentos dessa porção do legislativo. O resultado é impasse.

    Os dois lados concordam em que a cidade se tornará ingovernável sem alguma forma de mudança política. Mas não conseguem chegar a acordo quanto ao que fazer.

    Os democratas querem um percurso claro para o sufrágio universal –que em 2007 Pequim prometeu que "poderia ser implementado" em 2017, começando por eleições diretas para o posto de executivo chefe. Só quando o governo tiver de prestar contas ao povo ele disporá de mandado para enfrentar os desafios que a cidade tem de superar, eles dizem.

    Mas os partidários de Pequim afirmam que o problema é democracia demais e não de menos.

    Em entrevista, Lam, que assume sábado, reconheceu "certo grau de verdade" no argumento de que a falta de uma reforma política tornava mais difícil enfrentar questões como a habitação, educação e infraestrutura.
    Mas ela acrescentou que "se tivéssemos sufrágio universal amanhã, algum desses problemas desapareceria? Creio que não".

    Três anos atrás, Pequim apresentou a Hong Kong uma proposta que permitiria eleição direta do executivo chefe pelos moradores, mas com base em uma lista de candidatos aprovados por um comitê de nomeação controlado pelos chineses.

    As forças pró-democracia rejeitaram a oferta, mantendo a demanda de eleições diretas sem limitações, e a recusa de Pequim em aceitar a ideia resultou nos protestos do Movimento Guarda-Chuva.

    Foi um momento decisivo para Hong Kong, porque todas as partes envolvidas preferiram deixar passar a oportunidade de um compromisso e se posicionaram para um longo impasse.

    O maior erro das forças pró-democracia pode ter sido acreditar que o presidente Xi Jinping planejava conduzir a China a um futuro mais pluralista.

    Depois de quase cinco anos no poder, ele provou que o autoritarismo é seu forte, e demonstrou que considera a liberalização política como ameaça.

    Parece haver pouca esperança de que Pequim faça a Hong Kong uma proposta melhor do que a apresentada três anos atrás. Jasper Tsang, que acaba de se aposentar da presidência do legislativo do território e é aliado histórico de Pequim, disse que as atitudes da liderança chinesa para com a cidade haviam endurecido.

    "As pessoas me dizem que não haverá segunda chance", ele afirmou.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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