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    Sírios que voltam a Aleppo encontram seus sonhos despedaçados pela guerra

    ERIKA SOLOMON
    DO "FINANCIAL TIMES", EM ALEPPO (SÍRIA)

    06/07/2017 07h00

    Yan Boechat/Folhapress
    Moradores de Aleppo caminham pela cidade quase totalmente destruída por batalhas e bombardeios
    Moradores de Aleppo caminham pela cidade quase totalmente destruída por batalhas e bombardeios

    O rapaz mergulhou as mãos nos escombros de um bazar de Aleppo, numa cena que lembrou as dos sírios à procura desesperada de seus entes queridos presos sob escombros durante a guerra, que já dura seis anos.

    Mas Aram Habeshian não estava procurando corpos –ele procurava memórias. Especificamente, uma lembrança que vinculava três gerações de sua família à histórica cidade velha de Aleppo: uma foto de seu avô que fundara uma joalheria.

    "Meu pai pendurou a foto na parede depois que o pai dele morreu. Era uma foto em preto e branco numa moldura dourada. Nunca pensamos em fazer fotos da própria loja, porque nunca imaginamos que teríamos que deixá-la", conta o jovem de 27 anos, arrastando-se pelo que restou da joalheria Habeshian.

    A foto ou desaparecera ou estava soterrada tão fundo que ele não a encontrou. "Não consigo nem sequer descrever como estou me sentindo. Não consigo compreender tudo isso", disse Habeshian, segurando as lágrimas.

    Era a primeira vez que ele voltava à cidade desde que ele e sua família a deixaram para escapar dos combates, três anos atrás.

    Apoiadas pela Rússia e o Irã, as forças do presidente Bashar Assad agora estão em controle total de Aleppo, tendo recapturado a parte leste da cidade dos rebeldes seis meses atrás. E moradores mais ricos, como Habeshian, vêm retornando aos poucos durante o verão, em visitas breves.

    Antes de a guerra começar e de rebeldes terem invadido a cidade, Habeshian previa herdar a joalheria da família. Ele pretendia ampliar a loja, situada na famosa rede de vielas abobadadas que compõem os bazares, onde sabonetes feitos à mão, têxteis, joias e bijuterias eram vendidas a multidões de turistas e moradores locais.

    Yan Boechat/Folhapress
    Casal passa por meio de escombros de bairro da cidade de Aleppo
    Casal passa por meio de escombros de bairro da cidade de Aleppo

    Mas a joalheria agora é mais uma recordação perdida nos resquícios destruídos da histórica cidade velha, que desde o século 3 ocupa uma encruzilhada de rotas comerciais. Segundo uma avaliação da ONU, 60% da área foi gravemente danificada e um terço foi destruído por completo.

    Tesouros arqueológicos foram perdidos em ataques cruzados de artilharia, ataques aéreos das forças governamentais e explosões subterrâneas acionadas por rebeldes que cavaram túneis sob a cidade para atacar os soldados protegidos em áreas fortificadas acima deles.

    Ainda mais preocupante, possivelmente, é a destruição do legado compartilhado. Situada no coração de Aleppo, entre o lado oriental e ocidental da cidade, a cidade velha unia sírios de todas as profissões e camadas sociais. Eles vinham passear, fazer compras ou vender, como fizeram durante séculos quando esta cidade de maioria árabe incluía minorias, refugiados, migrantes e dignitários estrangeiros em sua tessitura social.

    "Perder a cidade velha seria perder nossa história, perder a essência da Síria", comenta Alaa al-Sayyed, membro da Iniciativa do Povo de Aleppo, uma entidade da sociedade civil. Ele junta fotos, textos e diários de moradores locais, em um esforço de preservação da história local.

    Aram Habeshian, que se mudou para Yerevan durante o conflito, é descendente de refugiados que fugiram do genocídio armênio de 1915. Seu avô trabalhou durante anos vendendo bijuterias de Aleppo numa cidade vizinha da fronteira síria. Em 1937 seu avô comprou uma barraca no bazar de Aleppo e a partir de então conduziu sua família à prosperidade.

    Não foi apenas a loja dos Habeshian que passou de geração para geração, mas também as relações com os fregueses. Em homenagem a seu avô, recorda Habeshian, um freguês muçulmano deu a seu próprio filho o nome de Aram. "Havia amizade aqui entre as pessoas de povos diferentes", ele diz.

    Mas a guerra desencadeou divisões econômicas e políticas profundas.

    Os bairros mais ricos da zona oeste da cidade, de onde vem Habeshian, passaram toda a guerra sob controle do governo e foram menos atingidos. Hoje estão repletos de cafés e restaurantes movimentados.

    Editoria de Arte/Folhapress

    A zona oriental e pobre, de onde os rebeldes foram expulsos em dezembro, é hoje um deserto de ruas cheias de crateras e prédios destruídos. No norte da cidade, forças curdas sírias têm seu enclave próprio.

    Antes da guerra, Aleppo tinha mais de 3 milhões de habitantes, mas hoje o número é provavelmente a metade disso. Muitas pessoas fugiram, especialmente cristãos pertencentes a minorias, como os armênios, cuja população em Aleppo caiu de 40 mil pessoas para não mais que 15 mil hoje, segundo alguns veículos de mídia armênios.

    Em seu primeiro retorno à cidade, Habeshian, partidário leal de Assad, diz que chorou quando desembarcou na Síria e se fez fotografar ao lado de um retrato do presidente.

    Ele pretende voltar definitivamente a Aleppo depois de concluir a faculdade na Armênia. Mas, quando saiu para visitar a loja de sua família, descobriu que os caminhos que conhecera na infância viraram um labirinto impenetrável, recoberto de escombros. Um lojista da área precisou ajudá-lo.

    Eles passaram por uma fonte medieval, onde Habeshian costumava tomar água quando era menino, e abriram caminho em meio ao bazar de tapetes, onde tapetes sujos e entulho se esparramavam por portas de madeira destruídas. Um calendário diário colado à porta de uma loja tinha parado no dia 17 de julho de 2012, o mês em que os rebeldes primeiro entraram na cidade. É provável que esse tenha sido o último dia em que o dono esteve na loja.

    A reconstrução da cidade não é prioridade do governo sírio, que continua a combater os rebeldes e a milícia terrorista Estado Islâmico. Segundo estimativas do Banco Mundial, os grandes trechos de áreas urbanas destruídas e esvaziadas em todo o país custarão pelo menos US$200 bilhões para ser reconstruídos.

    As pessoas estão começando a voltar a Aleppo não obstante a destruição, especialmente para a pobre zona oriental, para onde 141 mil antigos moradores já retornaram, segundo uma contagem da ONU, em um esforço para recuperar seus meios de subsistência.

    Bashir Oznuz, 60 anos, vendeu a joalheria de sua mulher para poder reabrir seu café, fundado há 40 anos, sob a cidadela da cidade velha. Ainda sem contar com fornecimento de água ou eletricidade pelo poder público, ele está oferecendo apenas refrigerantes mornos e narguilés. É o suficiente para atrair muitos fregueses ansiosos por visitar a cidadela, cujas luzes coloridas foram reacendidas pela primeira vez em anos.

    "Eu nem sequer achava que poderia voltar para cá algum dia", disse Oznuz, abanando a cabeça.

    Mas um legado mais pesado pode permanecer no ar por muito tempo depois de o entulho ter sido removido. Soldados que operavam barreiras policiais na cidade velha se queixavam da preocupação com artefatos históricos, enquanto os cadáveres de seus companheiros continuam soterrados sob os escombros. E algumas recordações queridas por alguns são carregadas de rancor.

    Saindo do que restou da loja de sua família, Habeshian sorriu ao lembrar-se que, quando era criança, adorava os refrigerantes que um camelô pobre e idoso mantinha geladas em um barril do outro lado da rua. Mas, quando pensou sobre o possível paradeiro do camelô, sua expressão se endureceu. O homem teria morrido? Teria tomado o partido dos rebeldes?

    "Ele pode ter se juntado àqueles animais [os rebeldes]", diz Habeshian. "Hoje em dia não dá mais para saber quem está do nosso lado."

    Tradução de Clara Allain

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