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    Fugindo de abusos em casa, refugiadas sofrem violência na ida à Europa

    ROSSALYN WARREN
    DO "WASHINGTON POST"

    07/07/2017 07h00

    A parteira folheou uma pilha de pastas sobre a mesa. Nas 24 horas anteriores, ela tinha entrado e saído correndo do consultório improvisado em um barco que resgatava pessoas no Mediterrâneo. Agora, enquanto o navio retornava ao litoral italiano com mais de mil migrantes amontoados no convés, ela podia rever seus casos.

    "Mulher de 34 anos, de Camarões. Grávida, estuprada na Líbia", disse Angelina Perri, uma italiana de 59 anos, lendo suas anotações. Ela trabalha para o grupo humanitário Médicos Sem Fronteiras (MSF) que realiza missões de resgate no mar entre a Líbia e a Itália. "Dezenove anos, da Guiné, estuprada na Líbia. Duas nigerianas, uma de 25 e outra de 24, as duas violentadas."

    As águas do Mediterrâneo entre a Líbia e a Itália são a atual linha de frente da crise de refugiados na Europa. Pelo menos 2.196 pessoas morreram no mar tentando alcançar a Europa neste ano, mais que o dobro de 2016. Mas o risco de morrer não impede que as pessoas iniciem a viagem: neste ano, mais de 80 mil chegaram à Itália em botes de madeira e de borracha, na maioria vindas de países da África ocidental.

    A rota para a Líbia também é perigosa, e especialmente traiçoeira para as mulheres. Em todas as missões de resgate, Perri encontra mulheres que dizem ter sofrido agressão sexual e estupro. Ela falou sobre casos de mulheres que contraíram HIV ao serem abusadas ao cruzar fronteiras e de outras que foram penetradas por armas e outros objetos, segundo lhe contaram.

    Apesar dos riscos conhecidos na jornada até a Europa, porém, as mulheres ainda se dispõem a arriscar a vida para escapar da violência sexual igualmente terrível em casa.

    Em 2016, a ONU identificou a violência específica de gênero, como casamento precoce e forçado e violência doméstica, como motivo para as mulheres deixarem seus países de origem. O problema persiste há algum tempo na região.

    Em 2010, um estudo da MSF sobre uma amostra de mulheres subsaarianas que tinham fugido do norte da África revelou que 70% delas tinham deixado seus países por causa de violência ou abuso. Quase um terço dessas mulheres disseram ter sido estupradas em seu país de origem.

    Os que cometem violência sexual na rota para a Líbia podem ser qualquer pessoa: forças de segurança e policiais, contrabandistas que exploram e traficam mulheres e às vezes até os homens que viajam com elas nos barcos de resgate.

    Em fevereiro, um relatório da Unicef (órgão das Nações Unidas para a infância) disse que os níveis de violência sexual, exploração, abuso e detenção na rota de migração do Mediterrâneo central fazem dela "uma das mais mortais e perigosas rotas de migrantes para crianças e mulheres".

    Uma instituição de caridade descreveu as condições na rota como "o inferno na terra", em que abusos sexuais ocorrem "em todas as etapas da viagem" e afetam "quase todas" as mulheres migrantes e refugiadas.

    O relatório disse que algumas mulheres decidem tomar injeções anticoncepcionais durante a viagem, por saberem que é grande a probabilidade de estupro.

    A bordo do barco de resgate, Perri atendeu 17 grávidas, juntamente com mulheres que viajavam sozinhas e mães cuidando de várias crianças. Algumas disseram que abandonaram parceiros abusivos; outras foram obrigadas a praticar sexo para financiar a viagem. Várias mulheres perguntaram a Perri se podiam fazer um teste de gravidez.

    "Então perguntamos se estar grávida é uma coisa boa ou ruim", explicou Perri. "Se elas disserem que é ruim, temos de investigar mais."

    Mesmo quando as que estão em trânsito chegam à Líbia, as condições continuam terríveis. Homens, mulheres e crianças são mantidos indefinidamente em centros de detenção, onde são torturados, violentados e deixados sem comida. Algumas mulheres são vendidas no mercado de escravas moderno.

    A Organização Internacional para Migrações, ligada à Nações Unidas, estimou que 80% das 11.009 mulheres nigerianas que chegaram à Sicília vindas da Líbia em 2016 foram traficadas.

    As mulheres que trabalham como empregadas em residências na Líbia às vezes são raptadas em pleno dia para ser contrabandeadas para a Europa.

    "As mulheres estão sentadas em casa almoçando e de repente são agarradas, arrastadas e atiradas em um barco", disse Sarah Adeyinka, uma mediadora cultural da MSF cuja prima da Nigéria foi traficada.

    PRINCIPAIS ROTAS DE TRAVESSIA PELO MEDITERRÂNEOOs caminhos usados por imigrantes que tentam chegar à União Europeia

    A reação da Europa às questões enfrentadas pelas refugiadas e migrantes tem sido lenta. Em abril, membros do Conselho Europeu admitiram que "a dimensão de gênero da crise dos refugiados foi amplamente desconsiderada" e disseram que a proteção das mulheres "deveria ser uma prioridade, independentemente de sua situação".

    No mês passado, o conselho ratificou legislação para prevenir e combater a violência contra mulheres, salientando a necessidade de procedimentos de asilo adequados aos gêneros e determinação da situação de refugiadas, assim como a presença de mulheres assistentes sociais, intérpretes, policiais e guardas nas instalações de trânsito.

    Mas algumas organizações beneficentes advertem que a violência sexual nas rotas de migração está sendo gravemente subestimada. Segundo elas, o treinamento insuficiente, juntamente com a falta de procedimentos eficazes para identificar casos de violência sexual, faz que as mulheres relutem em buscar cuidados médicos ou relatar os crimes.

    Em consequência, segundo a Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais, a Europa "atualmente não é capaz de evitar ou responder a sobreviventes de violência sexual e baseada em gênero de uma maneira significativa".

    Enquanto o barco chegava à Itália, Perri distribuiu certificados médicos para as que tinham sofrido violência sexual, tortura e tráfico, detalhando suas experiências e os conselhos médicos que haviam recebido. Elas esperam que esses certificados ajudem em seus processos de asilo, mas não é garantido.

    "Algumas mulheres se recusam a tirar um certificado", disse Perri. "Elas têm medo e não querem falar sobre isso."

    Traduzido por LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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