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    Mistério cerca toda a operação de blogueiro e líder anti-Putin na Rússia

    IGOR GIELOW
    ENVIADO ESPECIAL A MOSCOU

    09/07/2017 02h00

    Alexander Zemlianichenko - 12.jun.17/Associated Press
    Manifestantes em Moscou erguem cartaz a favor do líder oposicionista Alexei Nalvani, cuja rede de apoio tem crescido
    Manifestantes em Moscou erguem cartaz a favor de Alexei Nalvani, cuja rede de apoio tem crescido

    "Não vou falar com você. Te dou meu telefone, mas não atenderei. Me procure no Facebook", disse a moça de uns 30 anos, cabelo ruivo algo desarrumado e olhar assustado.

    Era Kira Yarmish, expulsando o repórter da sala comercial 21, no quinto andar do centro Omega Plaza, ao sul do centro de Moscou.

    O local, na rua de nome sugestivamente revolucionário Assentamento Lênin, é o quartel-general de operações de Alexei Anatolievitch Navalni, o ativista que virou ícone da oposição ao Kremlin do presidente Vladimir Putin.

    A Folha buscou escrutinar a organização de Navalni, que quer disputar a Presidência em 2018. Encontrou mais dúvidas do que respostas, a começar pela negativa de Kira, sua porta-voz, que não mais atendeu a reportagem.

    Aos 41 anos, o advogado e blogueiro anticorrupção é uma estrela fora da Rússia e está em toda roda de conversas sobre política no país.

    Afinal, diferentemente dos antecessores no cargo de esperança do Ocidente contra Putin, ele logrou levar cerca de 250 mil pessoas às ruas pelo país, em dois protestos neste ano contra a corrupção, os maiores atos desde 1991.

    Foi chamado pela revista britânica "The Economist" de "a maior ameaça a Putin", e um longo perfil na americana "The New Yorker" o definiu como "um homem tão forte, ou tão perigoso, ou tão livre –talvez todas essas coisas– que as ferramentas usuais do Kremlin não funcionam contra ele".

    Para antigos aliados, ele está mais para uma peça autorizada a participar do jogo.

    "Não podemos dar apoio a ele, embora não negue que ele seja muito carismático e a agenda contra corrupção seja boa. Digo os motivos. Primeiro, ele usa métodos ilegais, com convocações provocativas, que colocam jovens em risco. Isso não é democrático. Segundo, estão usando ele numa guerra interna", diz Emilia Slabunova, presidente do primeiro partido a que Navalni foi filiado, o Iabloko.

    Ela relembra que Navalni nunca acusa Putin diretamente pela corrupção. Seu alvo nominal mais vistoso é Dmitri Medvedev, o premiê e ex-presidente (2008-12), objeto de um webdocumentário em que o blogueiro o acusa de enriquecimento ilícito.

    E quem o manipularia? "Pode ser algum oligarca. Talvez Setchin, mas não tenho como provar", diz, em referência ao presidente da Rosneft (a Petrobras russa), Igor Setchin, visto como possível sucessor de Putin no sistema e desafeto do premiê.

    REDE DE DOAÇÕES

    Segundo a Folha apurou junto a pessoas com acesso à empresa, a teoria pode não ser exatamente conspiratória, mas de dificílima comprovação: o dinheiro que irriga o banido Partido do Progresso e a Fundação Anticorrupção de Navalni vem todo de doações via internet.

    Onde muitos veem um "crowdfunding" à la Barack Obama, outros suspeitam de um modo simples de esconder a origem do dinheiro.

    Com efeito, quando concorreu com sucesso à Prefeitura de Moscou em 2013, Navalni amealhou o equivalente a US$ 3 milhões pela web. Ficou num segundo lugar robusto, com 27%, contra 51% do prefeito putinista.

    Igor Gielow/Folhapress
    Interior do centro Omega Plaza, onde fica o escritório de Alexei Nalvani, em Moscou
    Interior do centro Omega Plaza, onde fica o escritório de Alexei Nalvani, em Moscou

    Para se ter ideia, a campanha de Putin à Presidência declarou ter gasto o teto de US$ 12 milhões em todo território russo um ano antes. Os valores estão corrigidos.

    Seria então Navalni um "proiekt" (projeto, em russo), gíria local para políticos de oposição, mas que servem para dar um verniz democrático ao jogo e acabam usados em disputas palacianas?

    Talvez. Por outro lado, Navalni organizou sua rede de apoio em 60 das 85 regiões russas, com declarados 120 mil voluntários. E levou multidões à rua que, incidentalmente ou não, gritaram palavras de ordem também contra o próprio Putin.

    "Os protestos só ocorreram porque há insatisfação. Se fosse pelo Navalni, ele nem iria tentar ser candidato. A posição de líder informal é muito mais vantajosa", pondera Alexei Levinson, diretor do Centro Levada, principal instituto independente de opinião pública russo.

    Nos levantamentos do Levada, Navalni tem só 1% de intenção de voto para presidente –Putin tem 63%. De todo modo, em junho a Comissão Eleitoral o impediu de concorrer por ter uma condenação a cinco anos de prisão.

    A sentença, que está estranhamente suspensa, é suficiente para deixá-lo de fora da disputa. Navalni acusa uma armação no caso, que o aponta como beneficiário de um desvio de madeira enquanto dava consultoria num governo local em Kirov.

    "Navalni é um homem corajoso, e estão perseguindo ele", disseram quase em uníssono as estudantes Vera, 18, e Masha, 20. Os nomes são fictícios, a pedido delas, que não se recusaram a serem fotografadas, contudo.

    As duas trocavam mensagens eletrônicas com amigos na pracinha em frente à estação Tertiakovskaia do metrô moscovita em 26 de junho e relutaram em falar de política. "Tivemos amigos presos no protesto de março, eu mesma quase fui levada", conta Vera, citando os cerca de mil detidos então em Moscou. Essa atração à geração que cresceu já na era Putin, iniciada em 2000, é chave para a estratégia de Navalni.

    Mesmo com itens como a abertura da economia em seu programa resumido na internet, é a luta contra a impressão de que o Estado é corrupto que motiva esses jovens –7 milhões deles que não votaram no pleito de 2012 estarão aptos agora, por terem completado 18 anos.

    "Mas isso é insuficiente para eleger alguém, só essa plataforma", afirma Levinson, que relativiza ao falar de outros grupos sociais importante. Entre eles, os mais velhos e, principalmente, aqueles que viveram o trauma do fim da União Soviética e da bagunça dos anos 1990, bem ou mal controlada por Putin.

    O próprio Navalni sabe disso, ao manter um discurso nacionalista eivado ocasionalmente por chauvinismo.

    Quer "paz com a Ucrânia", mas disse que não devolveria a Crimeia anexada por Putin em 2014 –ativo que ajuda a manter o presidente com mais de 80% de aprovação, mas que vem cedendo lugar à insatisfação econômica.

    Editoria de Arte/Folhapress
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    Além de outros dois contatos malsucedidos no escritório e, depois, no Facebook, a Folha buscou falar com os líderes regionais listados na página do partido. De 60 contatos, 20 distribuídos pelo país foram procurados por e-mail. Ninguém respondeu.

    O chefe do partido em Moscou, Nikolai Ialskin, não respondeu a cinco ligações, a quatro mensagens por WhatsApp e a um contato por Facebook.

    "Aqui é assim, temos de manter tudo meio em sigilo porque a polícia está de olho", defendeu um jovem chamado Iuri, voluntário no escritório de Navalni que descera para tomar um café no térreo do centro empresarial, que cobra entre R$ 22 mil e R$ 31 mil mensais de aluguel em salas como a do QG.

    É uma argumentação válida, usada pela mulher de Navalni, Iulia, vista como o cérebro político do casal.

    Além do rumoroso caso judicial e outros secundários, que já lhe valeram uma tornozeleira eletrônica, Navalni encerrou na sexta (7) sua segunda prisão temporária no ano por protestos ilegais.

    Alguns de seus escritórios, inclusive o visitado pela Folha, foram vistoriados pela polícia na quinta (6) sob alegação de locação irregular.

    Neste ano, Navalni foi atacado com uma substância verde e teve de fazer um tratamento na Espanha para recuperar a visão de um olho.

    "Normalmente, ele estaria preso por um bom tempo", diz Emilia, lembrando dos menos bem-sucedidos opositores Garry Kasparov (exilado nos EUA) e Mikhail Khodorkovski (exilado na Suíça após dez anos de cadeia). Sem falar em Boris Nemtsov, crítico de Putin assassinado a poucos metros do Kremlin, em 2015.

    O jovem voluntário de Navalni pode ter razão, mas, se a revolução do chefe se ampara na transparência por ele pregada, ela falta quando o assunto é seu modo de operação. A opacidade de sua aura se torna mais intensa à medida que se aproxima dela.

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