• Mundo

    Thursday, 02-May-2024 07:24:32 -03

    Dado como morto no Vietnã, soldado teve longo caminho para voltar à vida

    MICHAEL E. RUANE
    DO "WASHINGTON POST", EM HALLETTSVILLE (TEXAS)

    10/07/2017 11h10

    Associated Press
    Soldados dos EUA no Vietnã em foto de 1965
    Soldados dos EUA no Vietnã em foto de 1965

    Ronald Ridgeway "morreu" no Vietnã em 25 de fevereiro de 1968.

    O soldado raso dos marines tinha 18 anos de idade e tombou com uma bala no ombro durante violenta troca de tiros com o inimigo nos arredores de Khe Sanh.

    Dezenas de marines morreram ali nesse dia, integrantes daquela que ficaria conhecida como a "patrulha fantasma".

    Inicialmente Ridgeway foi dado como desaparecido em combate. No Texas, o colégio onde ele estudara, o Sam Houston High, anunciou seu desaparecimento pelo alto-falante.

    Mas sua mãe, Mildred, recebeu uma carta de seu oficial comandante dizendo que havia pouca esperança de que ele tivesse sobrevivido. E em agosto daquele ano ela recebeu um telegrama dos Marines informando-a "com profundo pesar" da morte de seu filho.

    Seus supostos restos mortais foram sepultados no dia 10 de setembro em um cemitério nacional em St. Louis. Sobre o túmulo foi colocada uma lápide com seu nome e o de oito outros militares desaparecidos em combate. Sua mãe voltou para casa com uma bandeira americana dobrada.

    Mas, enquanto seus companheiros e familiares choravam sua morte, Ron Ridgeway passou cinco anos em inóspitas prisões norte-vietnamitas, com frequência em solitária, travando guerra mental com seus captores e lutando para conservar uma vida que oficialmente já havia acabado.

    No mês passado, quase 50 anos após sua morte suposta, Ridgeway, que hoje tem 68 anos e se aposentou como supervisor do Departamento de Assuntos de Veteranos, sentado em sua casa em Hallettsville, contou em detalhes, pela primeira vez, uma das histórias mais notáveis da Guerra do Vietnã.

    No momento em que os EUA comemoram meio século passado desde o auge da guerra, em 1967 e 1968, sua saga de alguém que "voltou do mundo dos mortos" é a história da perseverança de um jovem que passou por combate armado, detenção e maus-tratos.

    Ron Ridgeway tinha 17 anos quando se alistou nos Marines, em 1967. Tinha 18 quando foi capturado, 19 quando seu funeral foi realizado e 23 quando foi libertado da prisão, em 1973.

    "Você tem que levar a vida um dia de cada vez", ele disse. "Tem que colocar na cabeça que vai sobreviver. Tem que acreditar que eles não vão derrotá-lo, que você vai vencer."

    Às 9h30 da manhã de 25 de fevereiro de 1968, a esquadra de quatro homens da qual Ridgeway fazia parte atacou uma trincheira do inimigo.

    A trincheira curva parecia estar vazia. Mas, quando Ridgeway e seus companheiros abriram caminho nela, de repente uma granada inimiga foi jogada dentro.

    "Recuamos pela curva", ele contou. "A granada explodiu."

    "Nós jogamos algumas granadas. Recuamos mais um pouco. Então percebemos que os disparos dos Marines atrás de nós tinham diminuído, quase sumido."

    Quando eles se levantaram para olhar para trás, viram soldados norte-vietnamitas caminhando em sua direção no meio da vegetação rasteira. "Acho que eles pensavam que tínhamos morrido todos", disse Ridgeway.
    "Mandamos ver, atirando contra eles com tudo. Eles eram alvos fáceis."

    Ridgeway tinha sido parte de um pelotão de 45 homens enviados da base de combates de Khe Sanh, no então Vietnã do Sul, que estava cercada pelo inimigo, para localizar posições inimigas e possivelmente capturar um prisioneiro.

    O inimigo vinha apertando o cerco em volta da base de marines, com fogo pesado de morteiros e artilharia, e a missão da patrulha era arriscada. Seis mil militares americanos estavam cercados por entre 20 mil e 40 mil soldados norte-vietnamitas.

    Naquela manhã de neblina, o líder da patrulha, segundo tenente Donald Jacques, de 20 anos, se desviou do caminho traçado e foi atraído para uma emboscada fatal. A informação é do comandante da companhia de Jacques, capitão Kenneth Pipes.

    Mais de 24 marines foram mortos, incluindo Jacques.

    Um dos marines que estava na trincheira com Ridgeway, James Bruder, 18 anos, de Allentown, Pensilvânia, foi abatido quando o inimigo abriu fogo, segundo o livro do escritor Ray Stubbe sobre Khe Sanh, "Battalion of Kings".

    "Os tiros costuraram o peito dele e o mataram", Ridgeway recorda.

    O líder da esquadra, Charles Geller, 20 anos, de East St. Louis, Illinois, arriscou uma olhada rápida. Uma bala passou por sua testa de raspão, jogando-o ao chão.

    "Todo o mundo morreu", disse Geller, segundo o livro de Stubbe. "Todo o mundo atrás de nós morreu. O que vamos fazer?"

    Eles tinham que recuar. Geller foi o primeiro a sair da trincheira. Ele atravessou correndo o campo pelo qual haviam atacado, seguido por Ridgeway.

    Filho de um operário da ferrovia Southern Pacific, Ridgeway vinha de um bairro de classe trabalhadora de Houston. Ele tinha um irmão menor.

    Seus pais estavam divorciados. Ele recorda que tinha abandonado o colégio e se alistado nos marines "porque eu queria me afastar de tudo".

    Ele e Geller correram em retirada e se depararam com Willie Ruff, 20 anos, de Columbia, Carolina do Sul, que estava deitado de costas com um braço quebrado.

    "Estávamos com pressa", disse Ridgeway. "Mas paramos. Ele estava ferido."

    Quando Geller se ajoelhou ao lado de Ruff, uma bala o atingiu no rosto, deixando um ferimento terrível. Então Ridgeway foi atingido por um projétil que penetrou em seu ombro e saiu do outro lado. Agora os três homens estavam no chão.

    "Nossa única opção era ficarmos deitados lá e nos fingirmos de mortos", disse Ridgeway. "Estávamos bem no meio do campo para qualquer um ver."

    Ridgeway disse que ficou alternando entre momentos desmaiado e outros consciente. Quando Geller, que estava delirando, se colocou de joelhos, o inimigo jogou uma granada, matando-o.

    Em seguida, disse Ridgeway, os norte-vietnamitas começaram a atirar nos marines tombados diante de suas trincheiras. "Ficaram atirando nos corpos para garantir que todos morressem", ele contou.

    Uma bala atingiu o chão ao seu lado. Uma segunda ricocheteou de seu capacete e o atingiu na nádega.

    "Quando aquela bala me atingiu, meu corpo estremeceu e eles acharam que tinham me liquidado. Me deram por morto e passaram adiante."

    Ridgeway desmaiou novamente. Quando acordou, já era escuro e a artilharia americana estava atacando a área com força.

    Ruff disse que tinha sido baleado de novo e implorou a Ridgeway para não abandoná-lo. Ridgeway disse que não o deixaria. Ruff morreu durante a noite.

    Ridgeway foi despertado na manhã seguinte com alguém puxando seu braço. Pensou, em um primeiro momento, que fossem seus companheiros marines.

    Mas, quando olhou para cima, percebeu que era um jovem soldado norte-vietnamita que estava tentando arrancar o relógio de seu pulso.

    Após o tiroteio, os sobreviventes arrasados da patrulha conseguiram retornar à base de combate, e os mortos foram deixados no campo de batalha.

    A ideia de uma missão para resgatar os corpos foi considerada pouco prudente pelos comandantes superiores, que temiam perder ainda mais homens e enfraquecer as defesas da base, segundo Kenneth Pipes, hoje aposentado e vivendo na Califórnia.

    Em entrevista telefônica, ele disse que, com binóculos, conseguia enxergar os corpos dos marines espalhados pelo campo de batalha. "Era pior que uma agonia", comentou. Não foram autorizadas mais patrulhas fora da base de combates.

    "Não podíamos ir lá buscar os corpos", disse Pipes. "Ficaram jogados ali por seis semanas."

    Em 17 de março ele escreveu à mãe de Ridgeway: "Sinto muito lhe dizer que não posso oferecer nenhuma base concreta para esperar que Ronald esteja vivo".

    Finalmente, no dia 6 de abril, os marines puderam retornar ao campo de batalha, contou Pipes.

    O que restara dos mortos foi levado de volta ao mortuário temporário de Khe Sangh, onde Pipes e os outros se encarregaram da tarefa tenebrosa de identificar os mortos. "Não havia muita coisa exceto ossos, calçados, botas e "dog tags" (chapinhas de identificação usadas por militares)", contou Pipes.

    No final, segundo ele e Stubbe, dos 26 desaparecidos e presumivelmente mortos em combate em 25 de fevereiro, foram identificados positivamente os restos mortais de todos menos nove.

    Os restos mortais avulsos e não identificados foram enviados para casa e colocados em dois caixões que seriam sepultados sob uma grande lápide com os nomes dos nove desaparecidos cujos restos não tinham sido identificados.

    O dia do funeral no Cemitério Nacional do Quartel Jefferson estava ensolarado e fresco. A mãe de Ronald Ridgeway assistiu à cerimônia. Houve bandeiras nacionais e homenagens solenes. Um fotógrafo de jornal fez fotos.

    Lá longe, no Vietnã, a estação das chuvas já tinha começado e Ron Ridgeway vivia seu sétimo mês como prisioneiro de guerra.

    Sentado sozinho em sua cela sem janelas, ao lado de um catre de madeira e do balde que usava para suas necessidades fisiológicas, Ridgeway começou a criar uma vida de faz de conta.

    Não havia ninguém com quem conversar. Só o deixavam sair da cela uma vez por dia, para esvaziar o balde.

    Então ele imaginava que estava em outro lugar, que tinha mulher e filhos, que tinha uma picape e que ia sair para pescar.

    Era um exercício mental, contou Ridgeway. Três dias vividos em seu mundo de faz de conta ocupavam um dia inteiro de sua vida na solitária.

    Seus captores o viam como "reacionário convicto" e consideravam todos os marines "animais".

    Ridgeway não havia cooperado com os guardas. Ele tinha mentido para os interrogadores, dado informações falsas e feito de conta que era um rapaz inexperiente que nunca tinha disparado seu fuzil.

    Naquela manhã, ao perceber que Ridgeway ainda estava vivo, o soldado norte-vietnamita se espantou e carregou seu fuzil.

    Ridgeway pensou que seria morto. "Nunca se ouvia falar que eles fizessem prisioneiros", explicou. Mas colocaram curativos em seus ferimentos, o alimentaram e o levaram embora, atravessando o Laos e o Vietnã do Norte em marcha forçada.

    Ridgeway passou tempo em vários acampamentos na selva. Foi colocado em uma espécie de tronco de madeira que prendia suas pernas. Acabou sendo encarcerado em prisões do inimigo.

    Ele pegou piolhos, contraiu malária, teve disenteria e perdeu 25 quilos. Usava uniforme listrado de prisioneiro de guerra, uma espécie de pijama rosa e preto, e sandálias de borracha. Levou tudo isso com ele quando foi libertado.

    Durante os interrogatórios, ele era amarrado e espancado com varas de bambu.

    Um dos interrogadores era especialmente cruel. Os americanos o apelidaram de "Cheese", porque ele parecia ser o "big cheese", ou grande chefão.

    Ele falava inglês e ficava sentado sobre uma cadeira alta quanto interrogava os prisioneiros de guerra deitados no chão, amarrados. Quando fazia um gesto com a cabeça, um guarda batia no prisioneiro com a vara de bambu.

    Ridgeway se recorda que "Cheese" tinha cara de rato e que era "um filho da p... sádico e cruel".

    Ridgeway disse que não ficava pensando no fato de que, em casa, as pessoas provavelmente pensavam que ele estivesse morto. Pensava que as pessoas deviam estar bem. Ele tinha uma tarefa a cumprir: continuar vivo.

    Em janeiro de 1973, ele estava no notório presídio norte-vietnamita conhecido como o Hilton de Hanói quando seus captores anunciaram de repente que os prisioneiros de guerra seriam libertados como parte de um acordo de paz, antes da retirada das forças americanas do Vietnã.

    Quando foi divulgada a lista dos prisioneiros que seriam libertados, o nome de Ron Ridgeway estava nela.

    Em Houston, sua mãe bateu na porte de uma vizinha para lhe dizer: "Ronnie está vivo!"

    Ron Ridgeway foi libertado em 16 de março de 1973. Ele voltou para casa, se casou e fez faculdade.

    "Voltei basicamente inteiro", ele disse. "Voltei capaz de viver minha vida. Fomos para lá com uma tarefa a cumprir. Cumprimos a tarefa da melhor maneira que pudemos. Tivemos a sorte de retornar."

    Vários meses após seu retorno, ele e sua mulher, Marie, foram ao quartel de Jefferson para ver sua lápide, que foi substituída mais tarde.

    "Aquilo me trouxe muitas memórias", ele contou. "As mortes de pessoas que eu conhecia. Foi uma experiência solene."

    A lápide trazia gravadas as palavras "Patrulha morta em emboscada no Vietnã em 25 de fevereiro de 1968".

    Havia oito nomes. O primeiro da lista era Ronald L. Ridgeway.

    Com colaboração de Magda Jean-Louis.

    Tradução de Clara Allain

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024