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    Coreia do Norte envia trabalhadores à Rússia em situação de semiescravidão

    DO "NEW YORK TIMES"

    12/07/2017 17h21

    Em toda a Europa ocidental e nos Estados Unidos, imigrantes vindos de países mais pobres, quer sejam encanadores da Polônia ou trabalhadores agrícolas do México, atraem opiniões e sentimentos negativos devido às ansiedades econômicas suscitadas pela oferta de sua mão-de-obra barata.

    Mas a cidade russa de Vladivostok, banhada pelo oceano Pacífico, aderiu positivamente a um novo ícone da globalização que atravessa fronteiras: os pintores de paredes vindos da Coreia do Norte.

    James Hill/The New York Times
    Dima, a North Korean laborer, works on a house on the outskirts of Vladivostok, Russia, June 13, 2017. North Korea, in desperate need of foreign currency, has sent tens of thousands of its impoverished citizens across its border where they are welcomed as “fast, cheap and reliable” laborers. Dima, who is on his second five-year assignment to Russia, says his work permit expires next year and he will have to go home. “I hope I can come back,” he said. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT12
    Dima, um operário norte-coreano, trabalha em uma casa na periferia de Vladivostok, na Rússia

    Diferentemente dos trabalhadores migrantes em boa parte do Ocidente, os trabalhadores norte-coreanos pobres são tão bem-vindos que ajudaram a colocar a Rússia no mínimo em pé de igualdade com a China –a maior fonte de apoio de Pyongyang– como maior usuária de mão-de-obra vinda do país pobre, mas dotado de armas nucleares.

    "Eles trabalham rápido, cobram pouco e são altamente confiáveis, muito melhores que os trabalhadores russos", comentou a dona de casa Yulia Kravchenko, 32 anos, de Vladivostok. "Trabalham sem parar de manhã até tarde da noite."

    TRÁFICO DE ESCRAVOS

    Os hábitos laborais que tanto agradam a proprietários de casas em Vladivostok também geram dinheiro muito necessário para o regime mais isolado do mundo, a ditadura hereditária no poder em Pyongyang, que está a um passo de possuir uma arma nuclear capaz de alcançar os Estados Unidos. Na semana passada a Coreia do Norte alcançou um marco quando testou seu primeiro míssil balístico intercontinental.

    Tendo sua vida dificultada por sanções internacionais, e incapaz de produzir muitos bens que interessem a qualquer comprador fora da Coreia do Norte –tirando componentes de mísseis, têxteis, carvão e cogumelos–, o governo enviou dezenas de milhares de seus cidadãos mais miseráveis a cidades maiores e menores da antiga União Soviética para ganharem dinheiro para o Estado.

    James Hill/The New York Times
    The North Korean ferry boat Man Gyong Bong arrives to the port of Vladivostok, Russia, June 15, 2017. North Korea, in desperate need of foreign currency, has sent tens of thousands of its impoverished citizens across its border where they are welcomed as “fast, cheap and reliable” laborers. (James Hill/The New York Times) — NO SALES — - XNYT10
    Barco norte-coreano chega a Vladivostok, na Rússia, levando trabalhadores

    Grupos de defesa dos direitos humanos dizem que esse tráfico controlado pelo Estado equivale a tráfico de escravos. Mas as condições de vida na Coreia do Norte são tão brutais que trabalhadores frequentemente pagam propinas para conseguir ser enviados à Rússia.

    Operários norte-coreanos ajudaram a construir um novo estádio de futebol em São Petersburgo que será usado na Copa do Mundo de 2018, uma obra em que pelo menos um deles morreu. Eles estão trabalhando em um complexo de apartamentos residenciais de luxo na zona central de Moscou, onde dois norte-coreanos foram encontrados mortos no mês passado em um albergue miserável perto da obra. Trabalhadores norte-coreanos derrubam árvores em acampamentos remotos de madeireiras no Extremo Oriente russo, lugares que lembram campos de prisioneiros da era de Stálin.

    MÃO DE OBRA DO ESTADO

    Mas eles deixaram indícios maiores e mais visíveis em Vladivostok, servindo de mão-de-obra de firmas de reformas residenciais que se gabam a seus clientes de que os norte-coreanos cobram menos, são mais disciplinados e mais sóbrios que os trabalhadores russos.

    "Surpreendentemente, essa gente é trabalhadora e ordeira. Os norte-coreanos não fazem intervalos longos no trabalho, não saem a toda hora para fumar um cigarro e não fogem do trabalho", prometeu o site na internet de uma firma de Vladivostok.

    O setor das reformas residenciais ocupa a extremidade mais benigna do programa norte-coreano de exportação de mão-de-obra. Pintores e colocadores de reboco não costumam ser sujeitos aos maus-tratos brutais sofridos pelos norte-coreanos que trabalham nos acampamentos de madeireiros ou obras de construção da Rússia.

    Embora sejam rigidamente controlados por agentes do Partido dos Trabalhadores da Coreia, o partido governista de Pyongyang, eles, de modo geral, não vivem nas condições descritas recentemente pelo Departamento de Estado norte-americano, em seu recém-lançado relatório anual sobre tráfico de pessoas, como "relatos dignos de crédito de condições semelhantes à escravidão sofridas por norte-coreanos que trabalham na Rússia".

    Mesmo assim, eles sofrem o efeito de algo que grupos de defesa dos direitos humanos dizem ser um elemento especialmente ofensivo do programa de exportação de mão-de-obra de Pyongyang: a maior parte do que ganham é confiscado pelo Estado.

    EXPLORAÇÃO

    Um relatório extenso sobre trabalhadores norte-coreanos na Rússia divulgado no ano passado pelo Centro de Dados sobre Direitos Humanos na Coreia do Norte, uma organização com sede em Seul, disse que o Partido dos Trabalhadores da Coreia confisca 80% do salário ganho pelos trabalhadores de madeireiras e pelo menos 30% do que é pago aos operários da construção. Mais dinheiro é tirado deles para cobrir seu alojamento e alimentação, para contribuições compulsórias a um chamado fundo de lealdade e outras "doações".

    "Essa estrutura de exploração", disse o relatório, constitui "uma das causas fundamentais do trabalho inumanamente forçado realizado pelos trabalhadores norte-coreanos na Rússia."

    A entidade estimou que as autoridades norte-coreanas ganham pelo menos US$120 milhões ao ano dos trabalhadores enviados à Rússia. Seria uma fonte vital de renda da dinastia familiar fundada por Kim Il Sung em 1948, com apoio de Moscou, e hoje chefiada por seu neto Kim Jong-un, de 33 anos.

    O relatório estimou em quase 50 mil o número de norte-coreanos que estão trabalhando na Rússia, embora outros estudos digam que são entre 30 mil e 40 mil. De qualquer modo são mais do que os que estão trabalhando na China ou no Oriente Médio, os outros destinos principais.

    CONFISCO

    O diretor russo de uma empresa de reformas residenciais de Vladivostok que emprega dezenas de norte-coreanos disse que a porcentagem de dinheiro confiscada dos salários deles aumentou muito nos últimos dez anos, passando de 17 mil rublos por mês em 2006 para 50 mil rublos (US$841) mensais hoje. Ele disse que seus operários mais bem pagos hoje perdem metade ou mais de seu salário mensal devido ao confisco. Enquanto isso, o líder de cada pelotão de 20 a 30 operários recebe uma porcentagem adicional de 20% para encontrar trabalhos de pintura para seus homens.

    O russo pediu para não ser identificado, temendo que supervisores do Partido dos Trabalhadores norte-coreano punissem seus operários ou os impedissem de trabalhar para ele.
    O aumento da porcentagem confiscada se deu após uma desvalorização forte do rublo em relação ao dólar, um fato preocupante para o regime norte-coreano, que quer dólares, não rublos.

    Mas o aumento dos rublos confiscados mais do que compensou pela queda no valor da moeda russa, refletindo o esforço desesperado de Pyongyang para buscar mais dinheiro desde que Kim Jong-un chegou ao poder, em dezembro de 2011, e acelerou os programas nuclear e de mísseis norte-coreanos.

    As sanções internacionais e a proibição chinesa à importação de carvão da Coreia do Norte, decretada em fevereiro após uma série de testes de mísseis, vêm reduzindo cada vez mais as outras fontes de receita externa com que Pyongyang pode contar.

    MELHOR DO QUE EM PYONGANG

    Na lista cada vez menor de opções do regime para gerar divisas, sobrou a exportação de mão-de-obra, além de vários restaurantes e outros pequenos negócios administrados pelo Estado norte-coreano em Vladivostok e outras cidades russas.

    O diretor de empresa russo disse que os norte-coreanos cumprem horários de trabalho "malucos" sem reclamar e telefonam a ele às 6h, mesmo nos fins de semana, se ele ainda não tiver aparecido para lhes indicar onde devem pintar ou rebocar naquele dia. "Eles não tiram dias de folga. Comem, trabalham e dormem, nada mais. E não dormem muito. Basicamente, eles vivem na condição de escravos."

    Ao mesmo tempo, observou o diretor, os norte-coreanos ainda querem trabalhar na Rússia, onde, apesar das condições árduas e do confisco de uma parte grande de seus salários, eles podem viver melhor e com mais liberdade do que poderiam em seu próprio país.

    "Não é trabalho escravo, mas é trabalho árduo. E é muito melhor aqui do que na Coreia do Norte", comentou Georgy Toloraya, ex-diplomata russo em Pyongyang.

    Tradução de Clara Allain

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