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    'Nova guerra fria' pós-Trump divide Alasca, ex-território russo

    ISABEL FLECK
    ENVIADA ESPECIAL A ANCHORAGE (ALASCA)

    30/07/2017 02h00

    No Alasca, a previsão do tempo diária para as cidades de Anchorage, Fairbanks e Juneau divide a tela da TV com as temperaturas previstas para as regiões russas de Chukotka e Kamchatka, do outro lado do estreito de Bering.

    O costume só causa estranheza aos turistas, já que, para os moradores do Alasca, a Rússia é um vizinho mais próximo que a maioria dos outros 49 Estados americanos –e não só pela distância de 3,8 km que separa as ilhas de Big Diomede, na Rússia, e Little Diomede, nos EUA.

    O Alasca guarda até hoje a herança de seus tempos de "América Russa", quando esteve sob domínio do país euroasiático, e seus moradores recusam o clima de "nova guerra fria" desde que o Kremlin foi acusado de interferir nas eleições de 2016.

    "A situação política entre a Rússia e os EUA não é o reflexo do que são esses dois países", diz o padre John Zabinko, 62, neto de russos que se diz apaixonado pelas duas nações. "Sou mais americano, mas o meu 'ser americano' é manter as tradições da minha família", explica.

    Isabel Fleck/Folhapress
    Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage
    Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage

    Na sua casa, não faltam as tradicionais "borscht", uma sopa de beterraba, e "pirozhki", uma torta de peixe. "Meu filho faz um ótimo 'kulich' [o pão de páscoa russo]", orgulha-se Zabinko, titular da Catedral Ortodoxa Russa Santo Inocêncio, em Anchorage.

    O religioso diz tentar não trazer a política para a igreja, mas, quando questionado a respeito das investigações sobre a Rússia, ele não hesita: "Tenho certeza que eles interferiram nas eleições". "Não acho que seja nada novo, é só porque agora eles foram pegos", completa, rindo.

    Segundo Zabinko, cerca de 200 fieis frequentam a igreja com as tradicionais cúpulas em forma de bulbo, dos quais três quartos são membros de comunidades nativas do Alasca. Os indígenas –em especial os aleútes e iúpiques– são os que mais guardam as tradições trazidas pelos russos nos séculos 18 e 19, e não é raro encontrar entre eles sobrenomes como Burokowski ou Kvasnikov.

    "A maioria dos moradores conhece sua herança russa e vê provas dela diariamente", afirma David Ramseur, autor de "Melting the Ice Curtain: The Extraordinary Story of Citizen Diplomacy on the Russia-Alaska Frontier" (Derretendo a cortina de gelo: a extraordinária história da diplomacia cidadã na fronteira Rússia-Alasca).

    Ainda hoje, bonecas matrioskas e garrafas de vodka estão entre os itens mais populares nas lojas de souvenir.

    O técnico de manutenção John Oleksa, 38, descendente de russos e americanos, se diz orgulhoso das tradições "dos dois lados", mas nem sempre foi assim.

    Ele lembra de, ainda criança, na Guerra Fria, não contar para os colegas de escola no Alasca que iria viajar com os pais para Moscou. "Achava que eles iam pensar que éramos comunistas", conta.

    O Alasca começou a ser explorado pelos russos perto de 1780, quando os EUA já tinham declarado independência do Reino Unido. Há 150 anos, decidiram vender o 1,55 milhão de km2; para os americanos por US$ 7,2 milhões (US$ 126 milhões em valores atualizados, ou R$ 392 milhões – US$ 87 por km2).

    Nacionalistas russos defendem que o Alasca volte a ser território do país e chamam o Estado de "Crimeia Americana", em referência à região ucraniana anexada em 2014. No mesmo ano, uma petição criada no site da Casa Branca pedindo a independência do Alasca dos EUA e sua reanexação à Rússia teve mais de 37 mil assinaturas.

    "Vivo há 40 anos no Alasca e nunca encontrei um morador que ache que tenhamos que voltar a ser território russo", diz Ramseur.

    "Os EUA pagaram US$ 7,2 milhões em 1867. Hoje o Alasca gera, em poucas horas, um valor muito maior que esse em produção de petróleo."

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    Cronologia

    A presença russa no Alasca

    • 1741

    O oficial da Marinha russa Vitus Bering parte de Kamchatka rumo ao continente americano, no que é tido como o descobrimento do Alasca

    • 1776

    Ao sul, treze colônias britânicas declaram independência do Reino Unido no dia 4 de julho

    • 1784

    Grupo de exploradores estabelece primeiro posto russo no Alasca, na ilha Kodiak

    • 1794

    Os primeiros missionários ortodoxos russos chegam ao Alasca para catequizar os nativos

    • 1799

    Rússia estabelece a Companhia Russo-Americana, que unifica todos os esforços de exploração de recursos naturais, no Alasca

    • 1867

    Rússia oferece território do Alasca ?aos EUA e, em março, acordam o valor de US$ 7,2 milhões (US$ 126 milhões em valores atualizados); em outubro, o Alasca se torna território americano. Dívida só é paga em 1968

    • 1959

    Em meio à Guerra Fria, o Alasca se torna o 49º Estado americano

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