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    Como Acapulco foi de destino turístico a capital de homicídios no México

    JOSHUA PARTLOW
    DO "WASHINGTON POST"

    25/08/2017 17h00

    Da baía em forma de meia-lua e das palmeiras que marcam sua orla, os taxistas de Acapulco precisam de apenas 10 minutos para chegar a um outro mundo, saqueado.

    Aqui, em um bairro chamado Renacimiento, a fachada de uma farmácia está coberta de pichações de gangues. Bancas de feira mostram marcas de incêndio. Barracas de tacos e consultórios odontológicos, salões de beleza e funilarias - todos vazios, por trás de portas metálicas fechadas.

    Nas tardes de sexta-feira, porém, o estacionamento da Oxxo,uma loja de conveniência neste bairro brutalizado, fervilha. Dezenas de taxistas acorrem ao local. É hora de pagar os meninos.

    Quando três jovens bandidos chegam em um Nissan Tsuru branco, o taxista Armando, 55, anota o número de quatro dígitos de seu táxi em um pedaço de papel, dobra uma nota de 100 pesos em torno dele e coloca as duas coisas em um saco de plástico preto. Trata-se de seu pagamento semanal ao submundo criminoso de Acapulco —o equivalente a US$ 5, ou cerca de metade do que ele fatura por dia.

    "Eles têm o poder", disse Armando, que revelou apenas seu prenome por medo de represálias. "Podem fazer o que quiserem".

    Nos últimos cinco anos, Acapulco vem sendo a cidade mais mortífera do México anualmente, em uma maratona de homicídios que esvaziou os bairros nas encostas e as colônias espaçosas que os turistas raramente visitam. Mas o termo "guerra das drogas" não basta para descrever o que está acontecendo na cidade.

    O cartel de drogas dominante em Acapulco e no Estado de Guerrero se dissolveu uma década atrás. Os criminosos que estão no comando agora são mais parecidos com gangues locais —e usam nomes como 221 e Los Locos. Cerca de 20 ou mais organizações criminosas, de acordo com as estimativas, se entrelaçam com representantes dos cartéis de drogas, que contratam seus integrantes para serviços. Os membros das gangues são jovens que muitas vezes se especializam em uma determinada forma de crime - extorsão, sequestro, roubo de carros, homicídios - e tomam a população quase indefesa da cidade como presa.

    "Eles matam barbeiros, alfaiates, mecânicos, artesãos, taxistas", disse Joaquin Badillo, que dirige uma empresa de segurança privada na cidade. "E se tornaram um monstro de 100 cabeças".

    O México está vivendo um ano que pode se provar o mais sangrento de sua história recente, com mais de 12 mil homicídios nos seis primeiros meses de 2017. Junho foi o mês mas sangrento nas duas últimas décadas, o período para o qual o governo mexicano dispõe de estatísticas válidas.

    Há muitas teorias sobre os motivos para o retorno feroz da violência, que caiu durante dois anos depois da eleição do presidente Enrique Peña Nieto em 2012: concorrência pelos domínios de líderes de gangues capturados; a dissolução de acordos secretos entre políticos e criminosos; uma reforma judicial que passou a exigir mais provas para que suspeitos sejam encarcerados; a crescente demanda por heroína, metanfetamina e opiáceos sintéticos nos Estados Unidos. Qualquer que seja a causa principal, o resultado vem sendo aterrorizante: a desintegração da ordem em vastas porções do país.

    A violência vem se espalhando a novos lugares e adquirindo novas formas. Em Puebla, ao sul da Cidade do México, há uma batalha pelo controle de combustível roubado. Cidades de praia como Cancún e Playa del Carmen estão ensanguentadas por conta de homicídios relacionados às drogas. A luta por rotas de contrabando deixa cadáveres espalhados pelas rotas de emigração.

    Em Acapulco, no passado um playground para astros de Hollywood, onde John e Jacqueline Kennedy passaram sua lua de mel e John Wayne curtia a brisa marinha, as drogas já nem são a questão principal. A cidade está imersa em crimes de toda ordem, e os criminosos nem precisam se esconder.

    Quando Evaristo abriu seu restaurante na avenida da praia de Acapulco, 15 anos atrás, as drogas eram abundantes mas isso não o incomodava. Acapulco sempre foi uma cidade de festa, e se tornou ponto de trânsito para a cocaína colombiana a caminho dos Estados Unidos, e para as papoulas usadas na produção de ópio que eram cultivadas em companhia da maconha nos altiplanos do Estado. Os traficantes dominantes eram os irmãos Beltrán Levya, do cartel de Sinaloa.

    "O que os Beltrán Levya faziam era vender drogas", disse Evaristo, que revelou apenas seu prenome por medo de represálias. "Mas eles não interferiam conosco".

    Crianças brincam na praia de La Caleta, em Acapulco

    Para Evaristo e muitos outros moradores de Acapulco, a queda da cidade à completa desordem começou com os acontecimento de La Garita. Um tiroteio escancarado naquele bairro, no centro da cidade, deixou veículos em chamas e corpos nas ruas, em janeiro de 2006, e se tornou parte do folclore da cidade, somando-se aos homens que mergulham das encostas locais direto ao oceano e aos astros de Hollywood que costumavam se hospedar por lá.

    O tiroteio também deixou uma coisa clara: cartéis nacionais de drogas estavam ativos em Acapulco - no caso o de Sinaloa, aliado aos Beltrán Levya, e os Zetas, que estavam buscando expansão. E essas facções estavam dispostas a usar imensa violência umas contra as outras.

    "Foi quando tudo começou", recorda Evaristo.

    Ao logo dos 10 anos seguintes, período em que o então presidente Ernesto Calderón declarou guerra ao crime organizado, as forças de segurança do México e seus aliados norte-americanos começaram a eliminar líderes de cartéis e chefes de gangues, causando o esfacelamento de suas organizações.

    Em Acapulco, o resultado foi o surgimento de um caleidoscópio de criminosos em disputa. Depois do assassinato de um dos poderosos irmãos Beltrán Levya, em 2009, facções rivais emergiram, com nomes como Cartel Independente de Acapulco, Cartel do Pacífico Sul e La Barredora, e entraram na briga com outras quadrilhas em ascensão de tráfico de heroína, e com gangues criminosas de outras cidades.

    Com a perda dos líderes de cartéis todo-poderosos, que controlavam rigidamente seus impérios do crime, as gangues de drogas passaram a se envolver cada vez mais com outros tipos de crime, como sequestros e extorsões.

    Cerca de duas mil empresas fecharam as portas na cidade nos últimos anos, de acordo com associações empresariais, expulsas pelo crime e pelo definhamento da economia. A maior devastação aconteceu em bairros pobres e mais distantes da costa, mas a faixa turística não foi poupada. O Hooters e o Hard Rock Cafe de Acapulco fecharam as portas, bem como famosos estabelecimentos locais, a exemplo do clube noturno El Alebrije e do shopping center Plaza Las Peroglas. Um contador que tem donos de restaurantes, médicos e mecânicos como clientes diz que cerca de 70% deles haviam fechado seus negócios no ano passado por causa da extorsão.

    "Hoje, em Acapulco, esses problemas nos causam uma psicose em massa", disse Alejandro Martínez Sidney, presidente da Federação de Câmaras de Comércio, Serviços e Turismo de Guerrero, que representa mais de oito mil empresas. "Estamos congelados, esperando que alguém apareça e nos exija dinheiro".

    Em setembro de 2016, cinco atiradores invadiram o restaurante de Ernesto, pedindo o número de telefone do proprietário. Depois de ele ter dito que não aceitaria extorsão, eles voltaram, apontaram suas armas para as cabeças dos funcionários do restaurante e ameaçaram incendiá-lo, recorda Ernesto.

    Desde então, ele vem pagando 40 mil pesos (cerca de US$ 2,2 mil) por mês aos criminosos.

    Soldados mexicanos fazem segurança no bairro de Barranca de la Laja, em Acapulco

    Ernesto teve de reduzir seus gastos com publicidade e manutenção para conseguir fazer os pagamentos. Dois dos seguranças privados da casa foram atingidos por tiros vindos de um carro, certa noite em maio, e sobreviveram. Se as coisas continuarem assim, Ernesto vai fechar o restaurante.

    "Minha vida está em risco", ele disse.

    As gangues criminosas do México não só proliferaram como passaram a se comportar de modo diferente do que era seu hábito em décadas passadas. Os cartéis no passado se baseavam em elos familiares e eram conhecidos por manter hierarquias rigorosas, que recompensavam a lealdade de seus integrantes por meio de promoções.

    As gerações mais novas de criminosos operam mais como uma "rede circular, uma teia de contatos que se aliam ocasionalmente mas também trabalham de forma independente", disse Cecilia Farfán, pesquisadora do Instituto Tecnologico Autonomy de Mexico, ou ITAM, e especialista em crime organizado, que está pesquisando em Acapulco.

    Se essas células quase independentes são destruídas, a rede mais ampla ainda assim pode continuar a funcionar e "as informações que uma célula é capaz de fornecer à polícia e a organizações rivais são limitadas", escreveu Farfán em sua dissertação, concluída recentemente.

    Os criminosos começaram a demonstrar menos lealdade a uma organização central, e se comportam mais como prestadores de serviços autônomos.

    "Eles contratam alguém por seu conhecimento especializado; mas essa pessoa não será desenvolvida dentro da organização", disse Farfán sobre a maneira pela qual os criminosos de rua são empregados. "As organizações não investem nas pessoas e as pessoas não sentem lealdade para com elas".

    As vítimas da violência em Acapulco surgem de muitas maneiras: pessoas apanhadas em meio a disputas entre quadrilhas de criminosos; empresários que não aceitem pagar por extorsão; transeuntes que cruzam fronteiras invisíveis entre os territórios de gangues de drogas. A situação se tornou tão confusa - há criminosos sempre de vigia em territórios que se sobrepõem —que os moradores muitas vezes se queixam de terem de pagar por proteção a duas ou três gangues diferentes. Pessoas morrem por causa de enganos de identificação ou por estarem no lugar errado na hora errada.
    Em uma noite recente, uma grande multidão aguardava silenciosamente na calçada diante de uma funerária de Acapulco. Gerardo Flores Camarena, 57, bartender de um hotel, não suportava ficar sentado, e caminhava de um lado para outro, angustiado, falando ao celular.

    "Os assassinos acharam que eles fossem de outra quadrilha", ele disse a um parente. "Confundiram-se. Você consegue imaginar? Confundiram-se".

    No dia anterior, seu irmão Ricardo, 42, motorista de ambulância, e os dois filhos adolescentes de Gerardo haviam sido encontrados no porta-malas de seu Nissan Sentra. Haviam sofrido uma forma de tortura conhecida como "torniquete": arames haviam sido enrolados em torno de seus pescoços, e eles foram sufocados.

    Um bilhete deixado em companhia dos corpos dizia que era aquilo que acontecia a ladrões de carros. Mas o Nissan era propriedade da família.

    "Nós nos sentimos impotentes contra o que está acontecendo nessa cidade", disse Flores.

    Quando o prefeito Evodio Velázquez Aguirre assumiu, em outubro de 2015, ele declarou que a polícia da cidade estava "totalmente fora de controle".

    Metade dos 1,5 mil policiais de Acapulco haviam sido reprovados na verificação federal de segurança e antecedentes. A polícia havia passado boa parte de 2014 em greve por melhores salários e benefícios, o que deixou a segurança da cidade aos cuidados das forças estaduais e federais.

    O prefeito disse que seu governo havia dado seguros de vida, moradia, novas câmeras e novos veículos aos policiais. Também foi criada uma nova força autônoma de policiamento para a área turística, com uniformes vistosos e destinada a atender os visitantes.

    Mas no ano passado houve 918 homicídios na cidade de 700 mil habitantes, o maior numero de homicídios entre todas as cidades mexicanas, pelo quinto ano consecutivo, No primeiro semestre deste ano, os números do governo apontam para ligeira queda - 412 homicídios ante 466 no período em 2016 -, mas o jornal local "El Sur" afirma que 466 homicídios aconteceram no primeiro semestre deste ano.

    O almirante Juan Guillermo Fierro Rocha, comandante do contingente da marinha mexicana em Acapulco, que tem papel crucial no combate aos cartéis, disse ao "El Sur" este mês que os criminosos estão atacando porque se sentem "acuados", e que espera que a violência se reduza em breve.

    Mas as autoridades mexicanas vêm fracassando há anos em impedir que Acapulco decaia.

    Cerca de cinco mil integrantes das forças de segurança estão estacionados na cidade, e a faixa turística costeira vive repleta de policiais federais e estaduais, soldados, fuzileiros navais e policiais municipais. Essa atenção à faixa turística, no entanto, deixa a maior parte da cidade exposta, segundo os moradores.

    A corrupção paralisa a polícia mexicana há décadas, e Acapulco não vem sendo exceção. Alfredo Álvarez Valenzuela, que comandou a polícia de Acapulco por cinco meses, até maio de 2014, disse ao jornal mexicano "Reforma", no ano passado, que "a força policial municipal não trabalha para o crime organizado. Ela é o crime organizado".

    Mas o problema vai além da corrupção. As polícias municipais mexicanas tradicionalmente têm pouco treinamento, são mal pagas e mal equipadas, e sua capacidade de investigação é baixa. A polícia federal e o exército muitas vezes desconhecem as cidades e as gangues locais de criminosos.

    Juan Salgado, especialista em reforma policial no centro de pesquisa mexicano CIDE, disse que a polícia reluta em visitar alguns bairros em Acapulco porque tem medo; os criminosos estão mais bem armados.
    "Não sei se o crime cresceria caso a polícia municipal desaparecesse", disse Salgado. "Eles são tão ineficientes em impedir crimes que não creio que isso fizesse grande diferença".

    Enquanto isso, muita gente se recusa a prestar queixas por medo de que as informações vazem para aqueles que os atormentam. Isso torna mais difícil investigar crimes.

    Em uma tarde recente, um homem usando um chapéu de caubói e carregando abertamente um fuzil de assalto foi avistado na principal avenida do bairro de Emiliano Zapata, a oito quilômetros da baía de Acapulco.

    Aos seus pés, na calçada, jazia outro jovem, descalço e em posição fetal, com sangue nos cabelos. O homem armado com o fuzil o chutava repetida e violentamente; depois caminhou com calma para uma picape branca. Um caminhão da polícia federal passou pela cena sem se deter.

    Os taxistas operam na interseção dos problemas de Acapulco. O número de turistas que buscam seus serviços caiu, e as ruas se tornaram mais perigosas. Alguns dos motoristas se tornaram parte do mundo do crime, trabalhando como vigias para as gangues (voluntária ou involuntariamente), ou transportando armas e drogas em seus carros. Quando uma gangue rival tenta tomar um bairro, seus membros muitas vezes matam os taxistas "em um esforço por cegar a organização estabelecida", afirmou Chris Kyle, antropólogo especialista em questões referentes a Guerrero e professor da Universidade do Alabama em Birmingham, em depoimento em favor de um taxista de Acapulco que solicitou asilo nos Estados Unidos.

    Mais de 130 taxistas foram mortos em Acapulco no ano passado. A probabilidade de que um taxista seja assassinado é oito vezes maior que a média da cidade.

    Adolescentes armados muitas vezes se apoderam de táxis em Renacimiento por horas ou dias. Eles incendeiam táxis como advertência. O taxista Guillermo Perez, 40, circula pelo bairro em um Fusca 1995, com o para-brisas rachado e o estofamento rasgado, e deixa seu carro mais novo escondido em casa. Ele já não apanha passageiros desconhecidos, e só transporta pessoas que conheça.

    "As pessoas estão aterrorizadas", disse.

    Anos atrás, transportar turistas era agradável, ele acrescentou, e até lucrativo - US$ 100 por um turno diurno de trabalho, e ainda mais à noite.

    "Era muito diferente; era Acapulco", ele disse. "Havia pessoas nas ruas. Todos vivíamos do turismo".

    Os ricos podem deixar a cidade ou construir casas dotadas de complexos sistemas de segurança, mas os pobres estão expostos. E assim Perez, como muitos dos 20 mil taxistas de Acapulco, paga sua taxa semanal de proteção, ainda que não seja protegido.

    "Se continuar vivo custa 100 pesos por semana", ele disse, "pagarei".

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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