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    Legado de estrangeiros, cólera devasta o Haiti

    FABIANO MAISONNAVE
    DANILO VERPA
    ENVIADOS ESPECIAIS A PORTO PRÍNCIPE

    27/08/2017 02h00

    Em novembro de 2011, a ambulante Exantus Francette, 44, trabalhava nas ruas da favela de Cité Soleil, em Porto Príncipe, quando começou a passar mal. Levada a um hospital, foi diagnosticada com a mesma doença que depois mataria seu marido: a cólera, introduzida no país por capacetes azuis do Nepal.

    "Tenho cinco filhos e ninguém para ajudar" diz Francette à Folha, em uma sala abafada ao lado de outras 28 vítimas da doença, todas de Cité Soleil. "A doença ainda está dentro de mim. Trabalho por 45 minutos e me canso."

    Francette é um dos haitianos listados em ação judicial contra a ONU capitaneada, no Haiti, pelo advogado Mario Joseph, reconhecido ativistas de direitos humanos.

    Eles exigem compensação individual pelos danos e afirmam que, até hoje, nunca receberam ajuda da Minustah, a missão de estabilização da ONU no Haiti, cujo comando militar é brasileiro.

    "A Minustah violou os direitos humanos dos haitianos", diz Joseph, em entrevista em seu escritório. "Direitos humanos são para americanos, franceses, países que pagam grandes quantias. Países pobres e negros, como o Haiti, não têm esse direito."

    Na última sexta (25), o processo sofreu um revés, quando um juiz de Nova York decidiu que não tem jurisdição para o caso. Os advogados que representam as vítimas disseram que haverá recurso.

    A epidemia eclodiu no país no final de 2010, dez meses depois do terremoto que matou cerca de 200 mil pessoas e traumatizou o país.

    Oficialmente, cerca de 9.000 pessoas morreram, mas um estudo da ONG Médicos sem Fronteiras revelou que, em algumas regiões, o número pode ser até dez vezes maior devido à subnotificação nas primeiras semanas. A doença estava erradicada do país.

    Apesar de diversos estudos terem rastreado a origem da epidemia até um contingente do Nepal , onde a doença é endêmica, a ONU só se desculpou com o Haiti em dezembro do ano passado, seis anos depois do início.

    Ainda assim, em um discurso à Assembleia Geral, o então secretário-geral, Ban Ki-moon, não admitiu a origem da epidemia, limitando-se a dizer que a ONU não fez o suficiente para conseguir conter a doença.

    Desde então, a ONU tenta levantar recursos para mitigar a epidemia, sem sucesso.

    Depois de fracassar em criar um fundo de US$ 400 milhões, a entidade tenta agora usar US$ 40,5 milhões que sobraram da Minustah, mas encontra resistência de alguns países, incluindo os EUA. O prazo final para a decisão é 11 de setembro próximo.

    O Brasil está entre os que apoiam a nova proposta.

    "A abordagem da cólera no Haiti não deveria apenas acelerar a detecção e o tratamento de casos, mas melhorar a água e as condições sanitárias, aliviar a pobreza e educar as comunidades para mudança de comportamento", afirmou a missão brasileira na ONU, em 14 de junho.

    O uso da cota do país –US$ 301 mil, referentes ao orçamento da Minustah em 2015 e 2016– depende, porém, de uma análise técnica e legal em Brasília, pois o recurso seria usado para outro fim.

    Enquanto a ONU demora em buscar uma forma de reparação, em Cité Soleil, os sobreviventes da epidemia dizem viver de doações esporádicas de parentes tão pobres como eles e sofrem preconceito. "Ninguém quer nos tocar, é humilhante", afirmou um dos presentes na sala.

    "A Minustah nunca me deu nada", diz Juliana Belgarde, sem conter o choro. "Economicamente, não posso manter minhas seis crianças."

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