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    Governo Trump

    Opinião

    Trump, de Nova York, não entende como Washington funciona

    HENRY ALLEN
    DO 'WASHINGTON POST'

    28/08/2017 11h52

    Washington versus Nova York: a incompreensão ressentida persiste, de parte a parte.

    Cães e gatos. Os Hatfield e os McCoy. Índia e Paquistão. Coiote e bip-bip. Cowboys e Redskins. É o que estamos vendo agora na Casa Branca, que serve de desconfortável residência ao nova-iorquino Donald Trump em Washington.

    Aos ouvidos de Washington, o presidente Donald Trump entende tudo às avessas. Vangloria-se de sua riqueza e define a mídia como "o inimigo do povo norte-americano". Mas como disse o veterano colunista Walter Shapiro sobre Washington, "trata-se de uma cidade na qual ser rico conta menos do que em outros lugares, e ser jornalista conta mais".

    O meio de troca em Nova York é o dinheiro intermediado por Wall Street. Em Washington, é o poder intermediado pela mídia.

    É possível comprar o Empire State Building, que não tem poder especial, mas não se pode comprar a Suprema Corte, que o tem.

    O dinheiro pode levá-lo a algum lugar, no Congresso, mas encontra limites.

    Como comprar o voto do senador John McCain, republicano do Arizona, sobre o projeto de lei de saúde? Ou pense no recente desentendimento entre a senadora Lisa Murkowski, republicana do Alasca, e o secretário do Interior Ryan Zinke, que ligou para ela a fim de se queixar de a senadora ter votado contra a revogação do Obamacare. Zinke e Trump não compreendem como o poder funciona, aqui.

    O estranho é que o Departamento do Interior nada tem a ver com o plano de reforma da saúde, mas muito a ver com projetos de obras públicas em curso no Alasca.

    Zinke, que fez carreira como integrante de uma unidade SEAL de forças especiais da marinha norte-americana, e Trump, nova-iorquino de carreira, estavam tentando colocar seu poder em uso.

    Parecem ter se esquecido de que Murkowski comanda o processo de confirmação para os indicados a postos no Departamento do Interior –um processo que ela anunciou seria postergado, depois do telefonema de Zinke (ao mesmo tempo negando que o telefonema tivesse a ver com isso).

    Eles não notaram que Murkowski só disputará reeleição em 2022? A senadora tem poder sobre o presidente e o secretário; já eles quanto a ela –nem tanto.

    Washington compreende Nova York melhor do que Nova York compreende Washington, assim como o sul dos Estados Unidos compreende o norte melhor do que o norte compreende o sul.

    Do mesmo modo, nas vastas porções do nosso país sobre as quais a elite apenas passa de avião, a classe trabalhadora norte-americana compreende os progressistas de coquetel melhor do que os progressistas compreendem a classe trabalhadora, se é que sabem que ela existe.

    John Moore/AFP
    ANCHORAGE, AK - NOVEMBER 03: U.S. Sen. Lisa Murkowski (R-AK) speaksduring a post-election press conference November 3, 2010 in Anchorage,Alaska. Murkowski defended her seat as a write-in candidate and isleading in the vote count over Republican candidate Joe Miller andDemocrat Scott McAdams. The state election commision, however, willhave to review all the write-in ballots statewide before an officialwinner can be announced. John Moore/Getty Images/AFP== FOR NEWSPAPERS, INTERNET, TELCOS & TELEVISION USE ONLY ==
    a senadora Lisa Murkowski durante evento em 2010 no Alasca

    Os "deploráveis", como os definiu Hillary Clinton –com suas armas e religião lastimáveis, como disse Barack Obama.

    Hillary e Obama acreditaram ter o poder de desconsiderar a maior porção do eleitorado. Os democratas o vêm fazendo há décadas, afinal. E o pessoal da classe trabalhadora por fim divisou um messias em Trump, acreditando por algum motivo que ele tinha o poder de salvá-los.

    Até agora isso não aconteceu, mas o presidente é nova-iorquino, e nova-iorquinos enfrentam dificuldades para fazer coisas pelo povo em Washington.

    A diferença pode se dever a detalhes muito triviais. Os moradores de Washington repararam quando Ivanka Trump, filha e assessora do presidente, usou um vestido tomara que caia que mostrava a alça aparentemente preta de um sutiã, ao assistir a um discurso de Trump no Congresso. Washington, cara Ivanka, não é uma cidade que aceita alças pretas.

    Jared Kushner, o marido nova-iorquino imensamente rico de Ivanka e outro dos principais assessores do presidente, parece encarar a necessidade de preencher formulários de verificação de segurança com o mesmo desdém que Leona Helmsley, socialite nova-iorquina conhecida pela língua ferina, encarava as declarações de impostos –"só a gentinha paga impostos".

    Kushner não incluiu boa parte das informações requeridas em seus formulários, e com isso atraiu a atenção dos serviços de segurança e de diversos departamentos e comitês de segurança e investigação, em Washington.

    Nicholas Kamm - 1.mai.2017/AFP
    Ivanka Trump, daughter and adviser of US President Donald Trump, speaks at National Small Business Week event in Washington, DC, on May 1, 2017. / AFP PHOTO / NICHOLAS KAMM ORG XMIT: NK2821
    A filha do presidente dos EUA, Donald Trump, Ivanka Trump

    Mas por que um nova-iorquino deveria se preocupar com essas pessoas? Trump as descartou como incompetentes e as acusou de vazamentos, sem aparentemente compreender que os serviços de inteligência não têm dinheiro mas têm imenso poder. Eles sabem dos podres de todo mundo. Será que Trump nem faz ideia de como J. Edgar Hoover manteve seu poder como diretor do Serviço Federal de Investigações (FBI) por todas aquelas décadas?

    Desde que cheguei de Nova York, há meio século, tenho acompanhado a chegada de outros nova-iorquinos a Washington. Eles acham que têm todas as respostas (como eu achei, por algum tempo).

    Nunca fazem perguntas como "quando você teve esse problema antes, de que maneira o resolveu?"

    Depois de algum tempo, começam a sentir que não dispõem do poder que imaginavam, da mesma maneira que os nortistas descobrem, ultrajados, que aqueles calorosos sorrisos do sul não querem dizer que sua presença é bem-vinda.

    Quanto Trump tuitou de surpresa sua ordem de exclusão de pessoas transgênero das forças armadas, deve ter imaginado que estava em território sólido. (De fato, os eleitores de Trump não têm a mesma simpatia dos progressistas que estudaram em universidades de elite pelo mundo LGBT.)

    Mas os eleitores de Trump não mandam em Washington, e a mensagem do presidente despertou ira até mesmo de republicanos conservadores no Congresso.

    Trump não compreendeu e nem poderia ter compreendido que em Washington é preciso conseguir a aprovação das pessoas certas às decisões, não importa que elas concordem ou não com o decidido.

    A regra é que nada pode acontecer de surpresa. As pessoas poderosas precisam ser informadas com antecedência –você usa o seu poder para aumentar o delas, e vice-versa. O presidente não o fez.

    Nem mesmo as forças armadas, das quais ele é comandante em chefe, o levaram a sério, recebendo a ordem com uma variação do velho truque que um sargento emprega contra o tenente ao dizer "sim senhor, cuidaremos disso imediatamente", para em seguida deixar o assunto morrer.

    Isso não começou com Trump. Os nova-iorquinos são assim há muito tempo. Em agosto de 1774, antes mesmo de Washington ser construída, John Adams visitou Nova York e comentou, em seu diário, que "com toda a opulência e esplendor desta cidade, há muito pouca cortesia visível... não existe modéstia, ou atenção aos semelhantes... Eles falam muito alto, muito rápido, e todos ao mesmo tempo. Se lhe fazem uma pergunta, antes mesmo de você chegar à terceira palavra de sua resposta, o interromperão e desembestarão a falar".

    Assim, é muito comum que os nova-iorquinos não se encaixem, aqui em Washington.

    Allen foi repórter e editor do 'Washington Post'.
    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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