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    Opinião

    Harvey, a tempestade que humanos ajudaram a provocar

    DAVID LEONHARDT
    DO "NEW YORK TIMES"

    01/09/2017 08h11

    Jonathan Bachman/Reuters
    REFILE - CLARIFYING LOCATION Residents wait to be rescued from the flood waters of Tropical Storm Harvey in Beaumont Place, Houston, Texas, U.S., on August 28, 2017. REUTERS/Jonathan Bachman TPX IMAGES OF THE DAY
    Moradores aguardam resgate da inundação em Beaumont Place, na cidade de Houston, Texas

    Antes mesmo da devastação provocada pelo fenômeno Harvey, o sudeste do Texas estava sofrendo um ano diferente de qualquer ano anterior.

    A temperatura superficial diária do Golfo do México no inverno passado não caiu para menos de 23ºC em nenhum momento. Adivinhe quantas vezes isso já havia acontecido no passado? Nunca.

    Esse tipo de calor exerce um efeito específico sobre tempestades: a temperatura mais alta provoca chuvas mais pesadas. Por quê? Quando o mar se aquece, mais umidade evapora no ar, e, quando o ar esquenta, algo que também vem acontecendo no Texas, pode carregar mais umidade.

    Em outras palavras, a gravidade do Harvey está quase certamente relacionada à mudança climática.

    Sim, estou ciente do aviso cauteloso emitido sempre que ocorre um desastre climático extremo: "nenhuma tempestade individual pode ser atribuída definitivamente à mudança climática". Isso é verdade. Alguma versão do Harvey provavelmente teria ocorrido mesmo sem a mudança climática, e nunca chegaremos a conhecer a verdade hipotética.

    Mas é hora de deixar de lado um pouco dessa precisão excessiva sobre a relação entre mudança climática e o tempo.

    O eminente pesquisador climático James Hansen empregou o termo "reticência científica" para descrever esse problema. Devido a um excesso de prudência acadêmica –prudência essa sob muitos aspectos admirável–, cientistas (e jornalistas) têm obscurecido os reais efeitos da mudança climática.

    Não exercemos o mesmo tipo de cautela excessiva em outras áreas importantes. Nenhum caso individual de câncer pulmonar pode ser vinculado definitivamente ao tabagismo, como observa Heidi Cullen, a cientista chefe do site Climate Central. Poucos acidentes veiculares podem ser vinculados definitivamente ao consumo de álcool, e poucas vidas salvas podem ser atribuídas definitivamente ao uso do cinto de segurança.

    No entanto, o tabagismo, a condução de veículos sob efeito de álcool e a não utilização de cinto de segurança criaram crises de saúde pública. A partir do momento em que o vínculo ficou claro e foi compreendido amplamente, as pessoas mudaram seu comportamento, e muito sofrimento foi evitado.

    A mudança climática está a caminho de tornar-se uma crise de saúde pública muito pior que qualquer um desses outros problemas. Ela já agravou secas, situações de fome generalizada e ondas de calor mortíferas. Nos Estados Unidos, o aquecimento global parece estar contribuindo para o alastramento da doença de Lyme.

    Agora temos o Harvey. O furacão provocou mais uma inundação que está sendo descrita como algo sem precedentes. Está semeando o medo entre milhares de texanos e submergiu grandes partes de Houston, a quarta maior cidade do país.

    A prioridade imediata é a proteção e o resgate das pessoas afetadas, é claro, e muitos texanos estão fazendo tudo para ajudar. Existe um certo ambiente amigável e descontraído em Houston, um misto do velho e do novo Texas, e isso tem estado em evidência esta semana. Habitantes da cidade andam checando se seus vizinhos precisam de ajuda e resgatando pessoas que nunca haviam visto. As histórias são inspiradoras.

    São inspiradoras porque envolvem pessoas que se unem para proteger umas às outras. E como as pessoas poderão unir-se para proteger umas às outras contra tempestades e inundações futuras? A primeira coisa precisa ser encarar com realismo a mudança climática, a razão principal pela qual as tempestades vêm gerando mais destruição que no passado.

    É evidente que alguns eventos meteorológicos extremos não estão ligados à mudança climática. Mas um número crescente desses eventos parece estar vinculado a ela, incluindo muitos que envolvem chuvas torrenciais, graças ao aquecimento dos mares e do ar.

    "Os eventos de precipitação pluviométrica mais forte vêm ficando mais intensos e mais frequentes, e a quantidade de chuva que caiu nos dias de chuva mais intensa também aumentou", concluiu a Avaliação Climática Nacional, um relatório federal americano.

    Segundo o relatório, "o mecanismo que move essas mudanças" é o ar mais quente gerado "pelo aquecimento provocado pelo homem".

    As chuvas mais pesadas podem interagir com os níveis mais altos dos mares, causando inundações, como parece ter ocorrido com o Harvey.

    Editoria de Arte/Folhapress
    Maiores tempestades nos EUA

    No caso específico de Houston, a ausência de leis de zoneamento levou a uma explosão de construção civil, que agrava inundações ainda mais. Entre 1996 e 2011, a área pavimentada da cidade aumentou em 24%, segundo Samuel Brody, da Universidade Texas A&M, e Houston não era pouco pavimentada em 1996. Diferentemente de áreas com solo exposto, as áreas pavimentadas não absorvem água.

    Quando as evidências são somadas, elas sugerem fortemente que a atividade humana tenha ajudado a criar a ferocidade do furacão Harvey. Talvez seja difícil dar ouvidos a essa mensagem –mais difícil, com certeza, do que destacar as histórias de solidariedade humana que estão mitigando as consequências nefastas da tempestade. Mas ela é a verdade.

    Além do fenômeno Harvey, o potencial de destruição decorrente da mudança climática é apavorante. Doenças, fomes generalizadas e inundações de proporções bíblicas são possibilidades reais. Infelizmente, as histórias sobre potencial sofrimento não têm sido o bastante para impelir este país a agir. Não levaram a um Projeto Manhattan para energia alternativa ou a um esforço nacional para reduzir as emissões de carbono.

    Assim, quando nos confrontamos com o sofrimento real que decorre em parte da mudança climática, precisamos ser francos sobre isso.

    O que está acontecendo no Texas é trágico. Se não tomarmos uma atitude, será uma parte mais frequente da vida moderna. Essa, em última análise, é a mensagem mais compassiva a transmitir em relação ao Harvey.

    Tradução de CLARA ALLAIN

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