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    Polícia é fiadora de paz entre gangues e se mistura em festas no Haiti

    FABIANO MAISONNAVE
    DANILO VERPA
    ENVIADOS ESPECIAIS A PORTO PRÍNCIPE

    03/09/2017 02h00

    Em créole, ti sourit é uma festa de rua que só começa depois das 23h. Na da última terça-feira (29), em Cité Soleil, havia rap, dança, futebol, distribuição de sandálias e maconha, tudo acompanhado por integrantes da Polícia Nacional Haitiana (PNH) com treinamento para atuar como polícia comunitária.

    Após 13 anos com os capacetes-azuis brasileiros, o Haiti aposta na polícia comunitária para evitar que a violência saia novamente do controle em Porto Príncipe, que concentra quase 80% dos assassinatos do país.

    A favela de Cité Soleil, com 200 mil pessoas, já foi uma das zonas mais violentas do país, mas agora registra uma taxa de homicídios menor do que a área nobre de Pétion-Ville, segundo o comando militar da Minustah, a missão de paz da ONU no Haiti, sob comando do Brasil.

    Os capacetes-azuis brasileiros tiveram base ali por cerca de dez anos, até junho. No início, enfrentaram gangues armadas, mas outro motivo da atual fase tranquila seria um acordo de paz celebrado há cerca de 15 meses entre as duas maiores "bases" locais.

    Versão haitiana das gangues, mas sem narcotráfico, as bases agem em territórios específicos e podem atuar como violenta facção armada, grupo político ou promovendo ações socioculturais. Muitas se tornam associações formais para ter legitimidade e negociar com candidatos, políticos eleitos e o governo.

    O ti sourit de terça (29) aconteceu numa região conhecida como Boston. Foi organizado pela base Fundação Sabathem, que faz um pouco de tudo, desde de atuar como grupo ilegal armado até promover ações socioeducativas.

    Fardados, os policiais comunitários ficaram na festa madrugada adentro. Indiferentes à maconha, só intervieram para organizar uma brincadeira de dança das cadeiras. Antes, haviam sido saudados diversas vezes pelos rappers locais.

    O auge foi uma semifinal de um campeonato de futebol na quadra improvisada sobre o asfalto, com três jogadores de cada lado. Centenas assistiram ao jogo narrado e comentado via potentes alto-falantes. Havia até camarote com música ao vivo. O campeão jogará com vencedores de torneios de outras bases —forma de aproximar lideranças e reduzir tensões.

    "A fundação luta por paz e melhorias na região", diz Laurent Frantz, 38, um dos 12 integrantes da cúpula da Sabathem. "Quando há guerra, nós mesmos que sofremos."

    VIVA RIO

    O projeto da polícia comunitária começou há cinco anos e tem sido auxiliado desde o início pela ONG Viva Rio, via financiamento da Minustah (missão de paz da ONU).

    Atualmente, o programa conta com 137 policiais e atua em toda a região metropolitana de Porto Príncipe. "Com a colaboração da população, podemos fazer um trabalho perfeito. Sem a colaboração da população, a polícia não pode fazer nada", afirma François Jimmy, chefe da unidade de polícia comunitária.

    Na Viva Rio, o projeto é coordenado pelo antropólogo carioca Pedro Braum, provavelmente o principal estudioso brasileiro do Haiti.

    A relação com o país começou em 2008, para as suas pesquisas de mestrado e doutorado, quando morou por cerca de um ano no bairro de Bel Air, na capital haitiana.

    Braum, que levou a reportagem a Cité Soleil, vai a todos os jogos do campeonato de futebol.

    A Viva Rio, que terá financiamento do governo canadense para os próximos dois anos, é um dos patrocinadores do torneio, junto com políticos locais e recursos próprios das "bases", como são conhecidas os grupos, armados ou não, que agem em certas áreas de Porto Príncipe.

    "A ideia é reforçar o trabalho da polícia comunitária no Haiti e, ao mesmo tempo, atuar com a população para aumentar uma certa responsabilização pelos problemas de segurança locais", afirma o antropólogo, que ajudou a polícia comunitária a costurar o acordo entre as diversas bases no país.

    Tanto o antropólogo quanto os líderes da base afirmam que sozinha a polícia comunitária seria insuficiente para ajudar a região, assolada pelo desemprego alto, pela miséria e precariedade de serviços básicos, como água e esgoto.

    "Para haver desarmamento, é preciso termos casas de melhor qualidade, saúde, escolas", diz Laurent Frantz, da Fundação Sabathem, base que atua em Cité Soleil.

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