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    Governo Trump

    OPINIÃO

    Com o iPhone, Steve Jobs produziu Trump presidente

    DAVID VON DREHE
    DO "WASHINGTON POST"

    06/09/2017 17h57

    O Congresso dos EUA está voltando do recesso e vai encontrar pilhas de trabalho —o que inclui um complicado projeto de reforma das leis de imigração encaminhado nesta terça-feira (5) pelo presidente Donald Trump, a elevação do limite para a dívida federal, medidas de assistência às vítimas do furacão e reforma tributária—, no exato momento em que outra das principais instituições dos EUA completa seu 10º aniversário.

    Essa coincidência me levou a formar uma estranha imagem mental. Vi o senador Mitch McConnell, republicano do Kentucky que lidera a maioria no Senado, como abade tonsurado de um mosteiro beneditino no século 15. O trabalho do abade é comandar a produção de exemplares da Bíblia manuscritos pelos monges. Ele e seus predecessores cuidam dessa função vitalmente importante há séculos.

    Mas de repente um joalheiro chamado Gutenberg, na cidade alemã de Mainz, desenvolve uma máquina capaz de produzir Bíblias —ou qualquer outro documento, aliás— idênticas, de maneira rápida e barata, usando uma impressora de tipos móveis e tinta que toma por base o óleo. E o abade está despertando para o fato de que nada voltará a ser como antes.

    Quando a Apple mostrou seu primeiro smartphone, em 2007, deflagrou uma revolução nas comunicações que provavelmente será tão transformadora quanto a criada por Gutenberg. Mudanças sísmicas como essas abalam radicalmente as suas culturas e sociedades; está em sua natureza que o façam.

    A essência explosiva da impressora de tipos móveis era sua capacidade de transmitir informações em escala ampla, no tempo e no espaço. Laicos passaram a poder ter e ler a Bíblia, e o resultado foi a Reforma Protestante.

    Cientistas podiam registrar suas observações de forma a compartilhá-las com outros cientistas, e inventores podiam fazer o mesmo com suas inovações. Os resultados foram a revolução científica e a Revolução Industrial.

    Filósofos puderam difundir suas ideias junto a ativistas, e um dos resultados disso foi um documento duradouro que principia com "nós, o povo dos Estados Unidos, a fim de formarmos uma união mais perfeita"...

    Se todas essas mudanças derivaram do uso de tinta oleosa e pequenas peças de metal, que terremotos se seguirão a uma tecnologia que confere a quase todos os seres humanos as ferramentas de que necessitam para a comunicação mundial em massa? É uma questão de alcance francamente assustador.

    Mas depois da eleição de 2016 —a primeira eleição verdadeiramente dominada pela comunicação móvel e pelas redes sociais, nos Estados Unidos—, uma coisa ficou clara: para pessoas como Mitch McConnell, o futuro é nebuloso. O poder dos líderes de partido tradicionais deriva de sua capacidade de criar e controlar conexões que são muito difíceis de estabelecer, de outra maneira.

    Um partido bem dirigido controla a conexão entre um candidato e o espaço em uma cédula. Controla o acesso a doadores importantes, que podem abrir os portais da televisão, a grande máquina de persuadir. Por meio desses e outros elos, o partido media a mais importante conexão de todas: aquela que deve existir entre o candidato e os eleitores.

    Vimos no ano passado que o poder do smartphone está vaporizando essas funções. Donald Trump capturou a candidatura republicana ainda que não tivesse conexão forte com o Partido Republicano. Nada parecido havia acontecido com qualquer grande partido americano, no passado. Depois de décadas como provocador e apresentador de programas, Trump tinha acesso próprio à televisão.

    O mais importante, porém, foi a maneira pela qual ele usou o smartphone para tirar vantagem de sua celebridade. Seus milhões de seguidores no Twitter e Facebook se tornaram o partido de Trump, e o partido crescia sem parar. Os eleitores de Trump sentiam uma conexão pessoal e autêntica com ele, e isso não deixava espaço para mediação pela elite republicana.

    Os líderes democratas evitaram por muito pouco uma perda de controle semelhante. Foi apenas o sistema dos "superdelegados", que beneficia as lideranças tradicionais do partido, que impediu que o senador independente Bernie Sanders, de Vermont, conquistasse a candidatura democrata.

    Os partidários de Sanders, com ajuda da conectividade propiciada pelos smartphones, conseguiram arrecadar quase US$ 230 milhões em verbas de campanha para as primárias via crowdfunding, o que quase resultou em derrota para a escolhida dos líderes do partido, a ex-secretária de Estado Hillary Clinton.

    No claustro do Senado, os escribas de McConnell são seus 51 colegas republicanos, que devem estar todos se perguntando, de alguma maneira, o que essa revolução significa para eles. Se seguirem a linha do líder do partido sobre questões difíceis como a dívida, impostos e imigração, ele será capaz de protegê-los de críticos que um simples toque na tela basta para mobilizar? É claro que não. McConnell não consegue nem se proteger contra os tuítes do presidente.

    Será que os democratas se disporiam a ajudá-lo a atravessar esse campo minado legislativo? É um caminho igualmente difícil. McConnell sempre foi mais forte em disciplina do que em negociação. Buscar apoio da oposição não é natural para um homem cuja devoção ao Partido Republicano é tão pura e permanente quanto os votos de um monge.

    Além disso, nessa era de conectividade direta, soluções de compromisso não são fáceis de obter. Qualquer democrata que vote em favor de projetos de lei que livrem McConnell de uma enrascada e permitam que o presidente se vanglorie de uma vitória provavelmente enfrentará uma tempestade de oposição na internet.

    Para resumir, nem o Congresso e nem a Casa Branca são o lugar certo para ler o futuro da política. Em lugar disso, olhe para Cupertino (Califórnia), onde no próximo dia 12 um novo iPhone nos fará recordar de que agora mudança é a norma.

    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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