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    Após 50 anos, execução de Che ainda assombra povoado boliviano

    NICHOLAS CASEY
    DO "NEW YORK TIMES", EM LA HIGUERA (BOLÍVIA)

    09/10/2017 17h53

    Cansada depois de décadas cuidando de sua lojinha, Irma Rosales sentou-se um dia com uma caixa de fotos e recordou o estranho que foi fuzilado na escola local, 50 anos atrás.

    Seus cabelos eram compridos e sujos, ela disse, e suas roupas, tão encardidas quanto as de um mecânico. E ele não disse nada, segundo Irma, quando ela lhe levou uma cumbuca de sopa, pouco antes de serem disparados os tiros que mataram Che Guevara.

    Nesta segunda-feira (9) se completa meio século desde a execução de Che Guevara, peripatético médico argentino cujo nome de batismo era Ernesto e que liderou combatentes guerrilheiros em países de Cuba ao Congo. Guevara obstruiu a ação dos Estados Unidos na invasão da Baía dos Porcos, discursou num pódio nas Nações Unidas e pregou uma nova ordem mundial que seria dominada pelos marginalizados, em vez das superpotências.

    Sua vida impressionante só foi superada pelo mito que tomou forma após sua morte. A imagem de Guevara, com sua barba desgrenhada e boina com uma estrela, virou o cartão de visita de revolucionários românticos em todo o mundo e todas as gerações, disseminada pelos acampamentos de militantes nas selvas e em dormitórios universitários pelo mundo afora.

    Mas os moradores de La Higuera, na Bolívia, que viveram aquele tempo, contam uma história muito menos mítica. Eles descrevem um episódio breve e sangrento em que um canto esquecido desta paisagem montanhosa se converteu por pouco tempo em um campo de batalha da Guerra Fria.

    Enquanto a América Latina recorda a morte de Guevara, a região passa por um processo maior de cobrança do que foi feito pelos mesmos movimentos de esquerda que buscaram inspiração em sua figura.

    As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, ou Farc, o maior grupo guerrilheiro remanescente na América Latina, saíram das selvas e depuseram suas armas este ano, após uma guerra que não teve vencedores, mas na qual a Colômbia perdeu mais de 220 mil pessoas.

    Na Venezuela, o movimento de inspiração socialista encabeçado pelo falecido presidente Hugo Chávez trouxe avanços na educação e saúde, mas o país mergulhou em uma situação de carestia, turbulência e ditadura.

    Mesmo Cuba, que durante anos viveu orgulhosamente sob a bandeira revolucionária hasteada por Che Guevara, hoje enfrenta um futuro incerto, enquanto a "détente" alcançada com os Estados Unidos se dissolve sob a administração Trump.

    A Bolívia é uma das últimas democracias latino-americanas ainda sob o controle da esquerda, e um de seus líderes disse que os movimentos políticos têm dificuldade em se manter ou crescer em um vazio desse tipo. "Não é possível prosperar ou se manter ao longo do tempo se não há vitórias e lutas em outros lugares", disse Álvaro García Linera, o vice-presidente boliviano.

    Jon Lee Anderson, que escreveu uma biografia de Guevara e foi crucial para a descoberta de seus restos mortais, que foram escondidos pelos militares e só foram encontrados na década de 1990, diz que tanto Che Guevara quanto a esquerda já passaram por fases de baixa anteriores."Mas Che permanece puro, de certo modo", ele disse. "É um ícone sempre presente. Para onde esse ícone vai no futuro? Tenho essa noção de que Che vai e vem."

    UM REVOLUCIONÁRIO DESAPARECE

    Nos anos que antecederam sua morte, o paradeiro de Che foi um mistério global.

    Depois de supervisionar os pelotões de fuzilamento que entraram em ação após a vitória comunista que ele ajudou a conquistar em Cuba, e após um período dirigindo o banco central cubano, em 1965 Che Guevara desapareceu de repente, enviado por Fidel Castro para organizar revoluções em outros países. Foi despachado para o Congo em uma missão infrutífera e depois se deslocou entre esconderijos em Dar-es-Salaam, na Tanzânia e em Praga.

    "Na época, as pessoas diziam que ele tinha sido morto por Fidel; outras falavam que ele morrera em Santo Domingo ou que estava no Vietnã", contou Juan Carlos Salazar, que em 1967 era um repórter boliviano de 21 anos de idade e trabalhava em sua primeira reportagem importante. "Elas o situavam aqui ou aqui, mas ninguém sabia ao certo onde ele estava."

    Loyola Guzmán era líder da juventude comunista em La Paz, a capital boliviana, e seria uma das primeiras pessoas a saber onde Che estava. Ela recebeu uma mensagem certo dia chamando-a a ir a Camiri, uma cidade pequena perto da fronteira do Paraguai. Conta que não fazia ideia com quem seria a reunião.

    Guzmán tem 75 anos hoje, mas um foto feita em janeiro de 1967 a mostra jovem, de uniforme de combate e boina militar, sentada sobre um tronco num acampamento na selva —e a seu lado está Che Guevara.

    "Ele disse que queria criar 'dois ou três Vietnãs'", disse Guzmán. A Bolívia seria a base de uma revolução que abarcaria esse país, a Argentina e o Peru. Guzmán concordou —e foi enviada de volta à capital para angariar apoio aos revolucionários e administrar suas finanças.

    A batalha começou em março de 1967.

    OS CAMPONESES LOCAIS FICAM DESCONFIADOS

    Che Guevara era conhecido pelo mundo afora, mas sua fama não lhe valera grande apreço entre os camponeses bolivianos.

    E o país já tinha vivido uma revolução na década anterior, tendo instituído o sufrágio universal, promovido uma reforma agrária e ampliado o ensino. Nem um único camponês foi documentado como tendo aderido à luta de Guevara durante o período que este passou combatendo na Bolívia.

    "Che não refletiu direito antes", comentou Carlos Mesa, historiador e ex-presidente da Bolívia que tinha 13 anos quando Guevara chegou. "Ele fracassou porque tinha que fracassar."

    Irma Rosales, a comerciante que deu uma tigela de sopa a Che depois de ele ter sido capturado, recordou que ficou espantada um dia em La Higuera, pouco antes de Guevara ser morto, quando um dos guerrilheiros do grupo dele, Roberto Peredo, vulgo Coco, entrou na casa onde ela estava trabalhando e pediu para usar o telefone.

    Nenhum dos comerciantes da região esperava por tal visita, pois os guerrilheiros não tinham fama positiva. Todos os homens da cidade já tinham fugido para as montanhas, temendo que os guerrilheiros tentassem recrutá-los à força para combater.

    "Nos disseram que os guerrilheiros espancavam os homens e estupravam suas mulheres, que eles roubavam coisas. Por isso, ninguém quis ficar esperando eles chegarem", contou Rosales.

    Ela recorda que o prefeito de La Higuera informou às autoridades que os guerrilheiros tinham vindo à cidade.

    EXÉRCITO ENCURRALA OS GUERRILHEIROS

    Com informações como as do prefeito, o Exército começou a fechar o cerco em volta de Che Guevara e seu bando de guerrilheiros.

    Entre os que participaram da caçada estava Gary Prado, na época um jovem oficial que passara o verão todo perseguindo Guevara nas montanhas.

    Na cidade de Santa Cruz, Prado, 78 anos e hoje general aposentado, admitiu que o Exército estava mal preparado para o início da uma guerra de guerrilha em sua área. Mas não demorou a receber treinamento dos EUA, sendo beneficiado também pela chegada de agentes da CIA (Agência Central de Inteligência), ansiosa por ver Che Guevara morto.

    'EU SOU CHE GUEVARA'

    No dia 8 de outubro começou uma troca de tiros entre soldados bolivianos e um grupo de guerrilheiros.

    Mas, recordou Gary Prado, esse enfrentaria teria final diferente de outros anteriores. Quando um dos guerrilheiros se rendeu, ele gritou: "Sou Che Guevara, e valho mais a vocês vivo do que morto".

    Julia Cortés, que hoje tem 69 anos, se recorda de ter ouvido um tiroteio à distância naquele dia quando chegava a La Higuera, onde dava aula na escola local.

    Foi para essa escola que o Exército levou Guevara capturado, e o guerrilheiro mal conseguia falar quando Cortés entrou na escola no dia seguinte, 9 de outubro. Ele resmungava em voz baixa algumas palavras sobre a revolução, aquela que estava perdendo.

    "Dizem que ele estava feio naquele momento, mas eu o achei belíssimo", ela recorda.

    Cortés contou que tinha acabado de voltar para casa quando soaram os tiros que mataram Guevara.

    Em La Higuera, após o assassinato, Rosales viu Cortés chegando à escola para limpar o sangue espalhado pela sala de aula.
    "Nunca mais houve aulas ali", disse Rosales sobre a escola, que hoje é um pequeno museu. "As crianças não queriam ir para lá."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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