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    Caso Weinstein revela medo de mulheres de revelar abuso sexual

    MARGARET RENKL
    DO "NEW YORK TIMES"

    23/10/2017 07h00

    Há alguns anos, quando ainda havia três adolescentes nesta casa, me entusiasmei durante o jantar e comecei a falar sobre o brilhantismo de um livro escrito por uma autora irlandesa que estava lendo. "Você gosta tanto dessas coisas, não creio que ainda não conhece a Inglaterra e a Irlanda", comentou um dos meus filhos.

    "É, mas é caro. Primeiro eu não tinha dinheiro, depois vieram vocês. Um dia, quem sabe", disse.

    Spencer Platt - 13.out.2017/Getty Images/AFP
    Mulheres pedem a prisão do produtor de cinema Harvey Weinstein em protesto em Nova York
    Mulheres pedem a prisão do produtor de cinema Harvey Weinstein em protesto em Nova York

    Cético, o garoto não se satisfez com a resposta. "Antes de entrar na faculdade, o papai fez a Europa de bicicleta, sozinho, em nove meses. Você poderia ter feito o mesmo se realmente quisesse."

    E é verdade: meu marido trabalhou para comprar a bicicleta com que viajou pela Europa, aos 19 anos. Sozinho.

    Ensinei meus filhos a se levantar quando entrasse um adulto no recinto. A colocar o guardanapo no colo, não falar de boca cheia, a defender alguém que estiver sofrendo bullying. O que não lhes ensinei, e só pensei nisso naquele momento, foi como viver a vida sendo mulher —e os cálculos mentais necessários para estacionar o carro, pegar um elevador ou mesmo fazer uma caminhada.

    "É perigoso para uma mulher acampar sozinha. Tem as que se arriscam, mas eu não sou tão corajosa", disse.

    Meus filhos cresceram ouvindo as histórias das aventuras do pai, mas nenhuma minha. Nunca contei do "amigo" da família, um garoto de 16 anos que uma vez ficou comigo quando os pais dele e os meus saíram para jantar quando eu tinha onze —e como ele ficou me seguindo pelo apartamento, mexendo na minha blusa, puxando o elástico da minha calça e insistindo para que eu a tirasse até que não aguentei e me tranquei no quarto para só sair quando meus pais voltaram.

    Nunca contei da vez que acompanhei uma amiga à loja de ferragens da cidade, quando nós tínhamos 14 anos —nem que ela usou o dinheiro que ganhara como babá para comprar uma chave de fenda e uma trava para manter o irmão mais velho afastado do seu quarto à noite.

    Nunca contei do meu primeiro emprego, em que comecei quando acabara de completar 16 anos —nem de como o gerente corpulento ficava inventando desculpas para ir à despensa toda vez que eu estava na fritadeira, como ele se espremia entre mim e o balcão, esfregando a virilha no meu traseiro.

    Nunca contei nada da época da faculdade —nem da vez em que tive que ligar para a polícia por causa do sujeito escondido na moita em frente de casa.

    Não há nada incomum nessas histórias. Elas fazem parte das experiências diárias de praticamente toda mulher que conheço, ainda que raramente compartilhadas.

    Talvez por isso a avalanche de histórias que invadiu o Twitter e o Facebook nesta semana seja tão poderosa. Começou em 5 de outubro, quando o "New York Times" publicou a primeira acusação de assédio sexual contra o produtor de Hollywood, Harvey Weinstein , mas já tinha virado um monstro, dez dias depois, quando a atriz Alyssa Milano tuitou: "Se você já foi assediada ou agredida sexualmente, responda este tuíte com um 'me too' ('eu também').

    Em questão de minutos a hashtag #MeToo já tinha tomado conta da rede: foram 500 mil respostas no Twitter e doze milhões no Facebook só nas primeiras 24 horas —e a enxurrada não dá sinais de diminuir. Os números só fazem crescer com as mulheres contando as histórias de homens que usaram o poder para subjugá-las ou coagi-las.

    Não conheço uma única que se surpreenda com essas histórias ou com os números estratosféricos. Só os homens. Alguns —cerca de 300 mil— estão escrevendo para contar que também foram vítimas de assédio, já que a violência e o abuso do poder obviamente não são uma questão de gênero ou orientação.

    Outros criaram hashtags próprias: #IHearYou ("Estou Te Ouvindo"). São homens, como meus filhos, que nunca souberam desses relatos antes porque, durante muito tempo, as mulheres acharam que não eram válidos. Ou porque quase sempre não eram levadas a sério.

    Vale mencionar a ironia do fato de o livro do qual estava falando para os meninos ao jantar naquela noite ser "Quarto", de Emma Donoghue, sobre uma mulher sequestrada do campus universitário e mantida como escrava sexual em um galpão de quintal.

    Mesmo lendo aquela história tão bonita, tão comovente, não me ocorrera confessar todas as vezes que quis sair para acampar, caminhar, ou viajar e não pude porque não encontrei quem fosse comigo e não tinha coragem de ir sozinha.

    Esse tipo de ativismo inevitavelmente sai do ciclo de notícias quando uma guerra nuclear deixa de ser apenas uma hipótese remota, quando refugiados desesperados em risco de vida deixam de ser só mais uma preocupação, quando a capacidade da mulher de tomar decisões em relação ao próprio corpo passa a ser ameaçada, quando milhões de americanos sem assistência médica deixam de ser apenas uma hipótese.

    A lista de perigos reais e imediatos que enfrentamos só cresce —mas a maioria deles pode ser atribuída diretamente a um homem que se gaba de poder violar qualquer mulher que deseje e ainda não sofreu nenhuma consequência por isso.

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