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    Comparação internacional ajuda a explicar massacres a tiro nos EUA

    MAX FISHER
    JOSH KELLER
    DO "NEW YORK TIMES"

    07/11/2017 13h42

    Quando o mundo contempla os Estados Unidos, vê uma terra de exceções: uma democracia comprovada, apesar dos ruídos ; um país que se envolve em cruzadas, na política externa; um exportador de música e filmes de sucesso.

    Mas há um aspecto excêntrico, que intriga tanto os admiradores quanto os críticos dos Estados Unidos. Por que, eles questionam, tantos massacres a tiro acontecem no país?

    Talvez, algumas pessoa especulam, isso aconteça porque a sociedade norte-americana é incomumente violenta. Ou talvez as divisões raciais tenham fragilizado os elos sociais. Ou podem faltar cuidados psiquiátricos, sob um sistema de saúde que costuma ser ridicularizado no exterior.

    Essas explicações todas têm uma coisa em comum: embora aparentemente sensatas, foram negadas por pesquisas sobre casos de massacres a tiro ocorridos em outras partes do planeta. A realidade é que cada vez mais pesquisas vêm chegando à mesma conclusão.

    A única variável capaz de explicar a incidência elevada de homicídios em massa nos Estados Unidos é o número astronômico de armas no país.

    O QUE EXPLICA OS MASSACRES A TIRO

    Os americanos respondem por 4,4% da população mundial, mas são donos de 42% das armas de fogo do planeta. De 1966 a 2012, 31% dos atiradores envolvidos em homicídios em massa em todo o mundo eram americanos, de acordo com uma pesquisa conduzida em 2015 por Adam Lankford, professor da Universidade do Alabama.

    Só o Iêmen registra número proporcionalmente mais elevado massacres a tiro, entre os países com mais de 10 milhões de habitantes —Lankford estipulou uma população mínima para os países envolvidos na pesquisa a fim de evitar aberrações estatísticas. O Iêmen só fica atrás dos Estados Unidos, em termos de número de armas de fogo per capita.

    Lankford constatou que, em termos mundiais, existe uma correlação entre o número de armas de fogo detidas pelos habitantes de um país e a probabilidade de que ele registre casos de homicídio em massa. A correlação se sustentou mesmo quando o pesquisador excluiu os Estados Unidos do quadro, o que indica que ela não pode ser explicada por qualquer outro fator especificamente americano.

    E a correlação continuou a se sustentar quando testada diante de variações na incidência de homicídios, sugerindo que os homicídios em massa são explicados mais pelo acesso de uma sociedade a armas do que por seu nível básico de violência.

    O QUE NÃO OS EXPLICA: CRIME E SAÚDE MENTAL

    Se a saúde mental responde pela diferença, os dados deveriam demonstrar que os americanos sofrem mais casos de doenças psiquiátricas do que os cidadãos de outros países nos quais há menos homicídios em massa.

    Mas as despesas per capita com saúde mental, o número de profissionais psiquiátricos per capita e a incidência de doenças mentais graves nos Estados Unidos se alinham aos dos demais países de alta renda.

    Um estudo de 2015 estimou que apenas 4% das mortes relacionadas a armas nos Estados Unidos podem ser atribuídas a questões de saúde mental. E Lankford afirmou em e-mail que os países com alta incidência de suicídio tendem a apresentar índices baixos de massacres a tiro —o oposto do que se deveria esperar caso houvesse correlação entre problemas de saúde mental e massacres a tiro.

    UM PAÍS VIOLENTO

    O índice de homicídios envolvendo armas de fogo foi de 33 por milhão de habitantes nos Estados Unidos em 2009, muito acima da média dos países desenvolvidos. No Canadá e no Reino Unido, ele foi de cinco por milhão e de 0-,7 por milhão de habitantes, respectivamente; e isso também se correlaciona com os índices de propriedade de armas nesses países.

    Os americanos veem a questão como uma expressão de problemas de crime mais profundos, uma ideia enraizada, em parte, em diversos filmes que retratavam a violência das gangues urbanas nos anos 90. Mas os Estados Unidos na verdade não apresentam propensão maior a crimes do que outros países desenvolvido, de acordo com um estudo importante conduzido por Franklin Zimring e Gordon Hawkins, da Universidade da Califórnia em Berkeley.

    O que os pesquisadores constataram, em lugar disso, em um resultado repetidamente confirmado desde então, é que o crime é mais letal nos Estados Unidos. Um nova-iorquino e um londrino enfrentam probabilidade igual de serem vítimas de assalto, por exemplo, mas a probabilidade de ser morto como parte da ocorrência é 54 vezes mais alta para o nova-iorquino.

    Os pesquisadores concluíram que essa discrepância, como muitas outras anomalias da violência nos Estados Unidos, se devia às armas.

    MASSACRES A TIRO ACONTECEM EM TODA PARTE

    Os céticos quanto ao controle de armas apontam para um estudo publicado em 2016 segundo o qual o número de mortos em incidentes em massacres a tiro nos Estados Unidos foi de 1,5 por milhão de habitantes ao ano, entre 2000 e 2014. Na Suíça, o índice foi de 1,7 por milhão, e na Finlândia foi de 3,4 por milhão. Isso sugeriria que massacres a tiro não são tão comuns nos Estados Unidos.

    Mas o mesmo estudo constatou que aconteceram 133 casos de massacres a tiro nos Estados Unidos, no período, ante apenas dois na Finlândia, com 18 mortos, e um na Suíça, com 14 mortos. Em resumo, incidentes isolados. Assim, embora homicídios em massa possam acontecer em qualquer parte, eles só acontecem rotineiramente nos Estados Unidos.

    Como no caso de qualquer crime, é impossível eliminar totalmente o risco subjacente. Qualquer pessoa pode perder o controle, ou se deixar fascinar por uma ideologia violenta. O que difere é a probabilidade de que isso conduza a massacres a tiro.

    ALÉM DAS ESTATÍSTICAS

    Em 2013, as mortes associadas ao uso de armas de fogo nos Estados Unidos incluíram 21.175 suicídios, 11.208 homicídios e 505 mortes causadas por disparos acidentais. No mesmo ano, no Japão, um país com um terço da população norte-americana, apenas 13 mortes foram associadas ao uso de armas.

    Isso significa que a probabilidade de que um americano morra por homicídio ou acidente envolvendo arma de fogo é 300 vezes mais alta do que a probabilidade que o mesmo aconteça a um japonês. O índice de propriedade de armas é 150 vezes mais alto nos Estados Unidos do que no Japão. A disparidade entre 150 e 300 demonstra que estatísticas sobre propriedade de armas não bastam, por si, para explicar o que torna os Estados Unidos diferentes.

    As leis que determinam quem tem direito a comprar uma arma e que armas podem ser compradas são mais fracas nos Estados Unidos do que no restante do planeta.

    A Suíça apresenta o segundo maior índice de propriedade de armas entre os países desenvolvidos, cerca de metade do americano. O número de homicídios envolvendo armas de fogo no país em 2004 foi de 7,7 por milhão de pessoas —incomumente elevado, em mais uma prova da correlação entre propriedade de armas e número de homicídios—, mas ainda assim muito inferior ao dos Estados Unidos.

    As leis suíças sobre venda de armas são mais severas, e impõem padrão mais elevado para obter e manter uma licença, e para os tipos de armas que podem ser comprados. Essas leis refletem mais do que um controle rígido. Implicam uma maneira de pensar sobre armas diferente, como algo que os cidadãos precisam conquistar afirmativamente o direito de ter.

    A DIFERENÇA ESTÁ NA CULTURA

    Os Estados Unidos são apenas um de três países —em companhia do México e Guatemala— que partem da suposição oposta: a de que as pessoas têm o direito inerente à propriedade de armas.

    O principal motivo para que a regulamentação da propriedade de armas seja tão fraca nos Estados Unidos pode estar no fato de que o cômputo do que se ganha e perde com o controle de armas pode ser diferente nos Estados Unidos do que em outros países.

    Depois de um massacre a tiros em 1987, o Reino Unido impôs leis severas de controle de armas. O mesmo aconteceu na Austrália depois de um incidente em 1996. Mas os Estados Unidos enfrentaram repetidamente o mesmo calculo e sempre determinaram que a propriedade de armas desregulamentada valia o custo que isso causa para a sociedade.

    É essa escolha, mais do que qualquer estatística ou regulamento, que diferencia mais os Estados Unidos.

    "Em retrospecto, o ataque à escola de Sandy Hook marcou o fim do debate sobre o controle de armas nos Estados Unidos", tuitou o jornalista britânico Dan Hodges, dois anos atrás, sobre o massacre de 20 crianças em uma escola primária do Connecticut em 2012. "Assim que os Estados Unidos decidiram que matar crianças era aceitável, o debate acabou".


    Tradução de PAULO MIGLIACCI

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