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    entrevista da 2ª

    Presa nas Filipinas, brasileira fala da vida na cadeia e do sonho de voltar

    ANA ESTELA DE SOUSA PINTO
    DE SÃO PAULO

    27/11/2017 02h00

    Na última sexta (24), dia em que completou 21 anos, Yasmin acordou às 5h.

    Fez 10 minutos de exercício, tomou café e às 7h se apresentou para a contagem de detentas na cadeia de Pasay, na Grande Manila.

    Presa sob suspeita de tráfico de drogas em outubro do ano passado, ela é um dos 2.999 brasileiros que estão detidos no exterior, segundo o governo brasileiro.

    A diferença é que Yasmin Fernandes Silva está nas Filipinas, país em que o presidente Rodrigo Duterte prometeu matar 100 mil traficantes.

    De julho de 2016 –quando Duterte tomou posse– a abril deste ano –quando a polícia deixou de divulgar dados– ao menos 7.000 foram mortos e outros 11 mil, presos.

    As cadeias que a Folha visitou no ano passado em Manila eram superlotadas e sem janelas. A temperatura interna chegava a 40° e o mau cheiro era sufocante.

    Muitos estão detidos sem terem sido denunciados, e a espera por um julgamento pode durar até cinco anos.

    Terceira filha entre cinco irmãos, de uma família de posses médias, a ex-vendedora de uma loja de roupas foi detida ao desembarcar em Manila, de um voo que saiu de São Paulo e fez escala em Dubai. Segundo a polícia, trazia 6,2 kg de cocaína escondidos na bagagem.

    Seu advogado, Kenneth Tiu, afirma ela não pode falar sobre os fatos pelos quais é acusada. À Justiça, Yasmin se declarou inocente. Mas não se sabe, por exemplo, por que ela viajou para as Filipinas, nem quais as hipóteses para a droga que a polícia diz ter encontrado em sua mala.

    "Espero poder provar minha inocência e voltar para casa", escreveu ela. "Eu não sou perfeita, mas ninguém é. Vi muitas pessoas me julgarem sem saberem o que realmente aconteceu."

    Proibida de receber ligações, Yasmin respondeu por escrito às 17 perguntas da entrevista, em sete folhas de caderno manuscritas.

    A autoria das respostas foi confirmada pela mãe, Andreia, com quem Yasmin se comunica uma vez por mês.

    Ratos e baratas são comuns na cela que divide com 83 mulheres, e ela diz que praticamente não vê o céu.

    Tem sonhos frequentes com o Brasil, nos quais pergunta à família: "É verdade que estou em casa? O milagre aconteceu?". "Mas aí acordo, olho para este lugar e choro de desespero", escreve.

    Se for condenada, a brasileira pode pegar até 40 anos de prisão. A Folha apurou que a promotoria estuda pedir uma pena de 30 anos.

    Extinta desde 2006, a pena de morte foi aprovada pela Câmara das Filipinas em 2016 e enviada ao Senado, mas sem regime de urgência.

    Não há prazo para que passe por nova votação.

    Advogados e defensores de direitos humanos acreditam que, mesmo que volte a vigorar, a pena de morte não deverá ser aplicada para quem já está preso, como a brasileira Yasmin.

    *

    Folha - Como é seu dia a dia?

    Yasmin Fernandes Silva - São quase sempre iguais. Acordamos às 5h, fazemos dez minutos de exercício num espaço minúsculo, às 6h é o café, às 7h a contagem de detentas. Temos um programa de terapia em grupo, como um jornal de TV: tem apresentador, repórteres e notícias.

    Não ajuda ninguém em nada. É só para dizer que eles fazem algo para nos "ajudar".

    Depois das 8h podemos dormir, às 11h é o almoço e o horário de assistir TV, até as 14. Das 14h às 15h é hora de dormir de novo e é proibida qualquer atividade. Depois tem limpeza do quarto e a janta, às 18h, e tempo livre.

    Às 23h é hora de dormir, e amanhã é tudo igual de novo.

    Qual o principal problema prático?

    A falta de espaço. Somos colocadas como sardinhas aqui. Hoje são 83 mulheres no meu quarto. Temos dois grupos de pessoas, as que têm cama e as que não têm. Nós que temos precisamos comprá-las. No meu quarto, são 24 camas, as outras 59 não têm nem espaço para dormir. O calor aqui também é horrível, não há espaço aberto.

    Quais são as pessoas mais próximas de você nas Filipinas? Qual a importância delas?

    Deus nos manda anjos em momentos difíceis. Minha melhor amiga, que considero como uma irmã aqui, é venezuelana, e o caso dela é parecido com o meu. Nos tornamos muito amigas, pois não entendíamos nada de inglês nem de tagalog [idioma filipino]. Como ela fala espanhol, era a única que me entendia.

    Tenho amigas da Indonésia, da África, da Rússia, é mais fácil de fazer amizade com elas pois elas entendem perfeitamente minha situação, a distância de casa, a dificuldade de se adaptar à cultura de um outro país, a linguagem, os costumes.

    Duas senhoras, da Indonésia e da África, são como mães para mim, sempre repartem comida e suas coisas comigo. Elas me ajudam a permanecer forte, a ter fé, a sempre rezar, me ensinam inglês, sempre me dizem para ter fé, que, se Deus, se o Universo me deu essa situação, é porque algo eu tenho para aprender.

    Elas sempre dizem para eu usar esse tempo aqui da melhor maneira que puder, que um milagre vai acontecer e vou voltar para casa.

    Quais têm sido suas principais dificuldades?

    Nos primeiros dias entrei em pânico, entrei em depressão, já não sentia vontade de viver, não via nenhuma saída para minha situação. Chorava o tempo todo, fiquei doente, e as pessoas não me entendiam. Não podia falar com minha esposa, não conseguia comer, dormir, me tratavam mal e eu me sentia um lixo.

    Não tinha dinheiro, e por isso as pessoas não davam a mínima para mim. Não tinha forças para rezar, não tinha forças para nada. Só não desisti de viver porque deixei a pessoa que eu mais amo me esperando no Brasil. Por causa da minha esposa, da minha família, da minha embaixada, eles me fizeram aos poucos recuperar a fé, a força.

    Decidi lutar, vi que esse não é o fim do túnel, é só um momento difícil que logo vai passar. Todo dia eu luto comigo mesma para permanecer forte e ter fé, porque manter a fé é a única forma de reduzir a dor.

    Fez um ano de sua prisão. Parece mais tempo? Ou menos?

    Sendo sincera, quando penso que já faz um ano, mal posso acreditar.

    Todo dia aqui parece uma eternidade, mas tento me ocupar o tempo todo para que passe depressa. Às vezes nem sei que dia é, quando vejo já passou uma semana, um mês, e o tempo vai passando.

    Nós sempre dizemos aqui: "Não pense demais. Amanhã, amanhã nós vamos para casa". Um dia esse amanhã tem que chegar, né?

    O que espera do processo judicial que a envolve?

    Espero conseguir voltar para casa, rezo todos os dias para voltar logo. Meu caso pode durar dois anos ou mais. Há pessoas aqui esperando há cinco, seis anos sem nenhuma decisão judicial.

    Consegue dormir bem? Quais têm sido seus sonhos?

    É bastante desconfortável, não tem espaço, mas o pior é que minha mente não me deixa descansar. Passo quase todo o tempo pensando no Brasil, já sonhei muitas vezes que tinha voltado para casa.

    Muitas vezes são tão reais que eu quase acredito que seja verdade. Lembro de muitas vezes perguntar em sonho: "É verdade que estou em casa? Eu consegui sair de lá?", "Mãe, eu consegui. O milagre aconteceu". Mas aí acordo, olho para este lugar e choro de desespero. Choro porque a saudade é demais e por alguns instantes eu estive lá com eles, mas continuo aqui sem saber quando isso vai acabar.

    Consegue comer bem?

    Sinto falta da comida de casa. Aqui às vezes a comida não dá para engolir. Algumas pessoas que recebem visitas às vezes me dão algo, outras vezes não como. Sinto mais falta de comer feijão, [escreve "rs", para indicar risos], porque aqui eles comem só arroz. Tudo tem arroz [desenha uma carinha sorridente].

    E sua saúde?

    Tenho alergia às vezes, porque aqui não é muito limpo. Tem muita, muita barata e muito rato. Às vezes tenho crises de bronquite porque é tudo fechado. Não tem ar fresco, é muito quente e abafado.

    Neste um ano, sente que mudou internamente?

    Muita coisa mudou em mim. Cada dia aprendo mais coisas. O que mais mudou foi que aprendi que não podemos julgar ninguém. Toda história tem seus dois lados.

    Às vezes a pessoa é culpada, mas também é vítima. Vítima do sistema, da pobreza, da falta de oportunidade, às vezes de sua própria mente.

    Aprendi a ter mais fé, a amar mais, a dar valor para as coisas mais simples, que antes para mim não tinham valor.

    Aprendi a ser mais humilde, a olhar as pessoas com compaixão, a analisar a mim mesma, admitir meus erros e tentar ser alguém melhor.

    Temos que tirar coisas boas até dos momentos ruins. Somos espíritos em evolução. Todos nós cometemos erros, viemos aqui para aprender, e quem aprende sem errar?

    Todo erro pode ser perdoado, existe o lado que acusa, julga, e o lado que reza todo dia e toda noite pelo perdão, por uma nova chance.

    E por que nós não merecemos mais uma chance?

    Eu não sou perfeita, mas ninguém é. Vi muitas pessoas me julgarem sem saberem o que realmente aconteceu para eu vir parar aqui. Quero pedir a cada um que me julgou e que ainda vai me julgar que analise a si mesmo.

    O importante é aprender uma nova lição com nossos erros, e não só ficar se perguntando "Por que aconteceu comigo?".

    Do ponto de vista abstrato, quais são seus principais sonhos, seus principais desejos hoje em dia?

    Meu principal desejo é minha liberdade. Poder voltar para o Brasil, rever minha família, minha esposa, um dia poder realizar o sonho de minha vida que é ter um neném. Eu quero ser feliz de novo.

    Se pudesse falar diretamente com as pessoas que estão lendo esta entrevista, o que diria?

    Queria repetir: todos nós somos humanos. Todos cometemos erros. Às vezes somos julgados sem cometê-los.

    Somos pessoas como você, temos sentimentos como você. Temos histórias, temos dores. Não sejam cruéis em apenas nos julgar, coloquem-se no nosso lugar.

    Estou sem ver minha família há mais de um ano, com uma língua diferente, uma cultura diferente. Eu não vejo o sol, a lua, o céu. Todo dia é igual. Às vezes a dor é tão grande que meu coração entra em pânico.

    Às vezes penso em desistir, mas sei que tenho que ser forte. Todas nós aqui tiramos forças da nossa fé e esperança de que nada pode durar para sempre e um dia isso vai acabar. Um dia isso tem que acabar.

    Espero poder provar minha inocência e voltar para casa. Peço que todos se lembrem de que estou sendo julgada, fui acusada; isso não quer dizer que eu sou culpada.

    Eu não desejo o que eu passo aqui para ninguém no mundo.

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