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    Jornalista russa sobrevive a ataque brutal e promete voltar à ativa

    ANDREW ROTH
    DO "WASHINGTON POST", EM MOSCOU

    14/12/2017 12h10

    David Filipov/Washington Post
    Tania Felgengauer em seu apartamento em Moscou
    Tania Felgengauer em seu apartamento em Moscou

    Tania Felgengauer se recorda do momento desesperador no mês passado quando um ouvinte invadiu a estação de rádio moscovita onde ela trabalha e a apunhalou várias vezes no pescoço. Ela se lembra de ter acordado mais tarde em um hospital de Moscou, sob anestesia forte, com "tubos em toda parte" e uma pilha de bilhetes apavorados de colegas e amigos.

    Em um primeiro momento os médicos duvidaram que Felgengauer -apresentadora muito popular e sem papas na língua da estação de rádio Eco de Moscou-voltaria algum dia a falar ou respirar sem ajuda de aparelhos.

    Mas, numa sexta-feira recente, ela estava sentada em um café italiano, tomando chá e calmamente fazendo um inventário de seus ferimentos (incluindo lesões na glândula salivar e veia jugular, cortes no pescoço e nas mãos), falando numa voz suave porém resoluta que comprovou sua recuperação surpreendente de um ataque quase fatal.

    Felgengauer já estava planejando seu retorno à rádio, onde é apresentadora de um programa de entrevistas que satiriza políticos e celebridades russos.

    "Amo o jornalismo, amo meu programa, amo minha emissora", disse a radialista de 32 anos, que trabalha desde a adolescência para a Eco de Moscou, onde é vice-editora executiva. "O atentado que sofri não vai mudar isso."

    Com um sorrisinho, ela acrescentou: "Acho que vou ter que bolar algumas piadas sobre minha garganta".

    Seu tom de leveza bem-humorada oculta traumas reais. Felgengauer disse que desde o ataque ela tem evitado ler sobre seu agressor, um homem de 48 anos chamado Boris Grits, que desarmou um segurança e então a atacou com um punhal na coxia da emissora.

    Fotos do piso ensanguentado do local provocaram indignação nas redes sociais russas, em que internautas encararam o incidente como mais um em uma série de ataques contra jornalistas conhecidos.

    Alguns aspectos do atentado contra a jornalista lembram uma longa campanha de violência contra jornalistas russos. Mas outros pareceram destoar dessa história.

    Na Rússia, jornalistas que desagradam a interesses poderosos, especialmente os empresários e políticos locais que dominam as regiões do país, podem enfrentar violência ou pressão da polícia.

    Neste ano, uma colega de Felgengauer, a colunista do jornal "Novaya Gazeta" Yulia Latynina, fugiu do país depois de seu carro ser incendiado. Após o ataque a Felgengauer, o editor da "Novaya Gazeta" disse que vai armar sua Redação com pistolas com balas de borracha.

    Os assassinatos de alguns jornalistas viraram escândalos nacionais; foram os casos da correspondente da "Novaya Gazeta" Anna Politkovskaya, em 2006, e do editor da "Forbes" russa Paul Klebnikov, em 2004. Os "zakazchiki", ou mandantes dos crimes, nunca foram capturados.

    Mas, diferentemente dos assassinatos cometidos por mafiosos ou dos espancamentos em pátios sofridos por jornalistas visados no passado, o atentado contra Felgengauer parece ter sido menos calculado e mais caótico. Interrogado pela polícia, Grits disse que a radialista o assediou durante anos, usando telepatia. Ele passou a impressão de estar louco.

    Nos dias seguinte, uma discussão correu solta entre jornalistas e liberais de Moscou quanto às possibilidades de o ataque ter sido parte de uma conspiração para silenciar uma voz crítica.

    Felgengauer disse que não quer tirar conclusões apressadas. "Adoro teorias conspiratórias, mas não neste caso", ela explicou. As imagens do ataque obtidas de câmeras de segurança mostram o agressor "com atitude confiante... mas se deduzirmos disso que 'foi tudo planejado', alguém pode tirar minhas palavras de contexto. Quero ver os resultados da investigação."

    O ataque chamou a atenção mundial. Em um discurso que fez em 15 de novembro na entrega dos Prêmios Internacionais de Liberdade de Imprensa, promovida anualmente pelo Comitê de Proteção a Jornalistas, a atriz Meryl Streep citou Felgengauer como uma entre vários jornalistas que "pagaram caro este ano por seus questionamentos".

    Streep também citou a repórter investigativa maltesa Daphne Caruana Galizia, morta no mês passado quando uma bomba explodiu em seu carro, e Kim Wall, a jornalista freelancer sueca que morreu em agosto em um submarino pequeno (o dono do submarino foi acusado de sua morte).

    As comparações levaram Felgengauer, que passa boa parte de seu tempo na Redação, a fazer um exame de consciência.

    "São uma grande honra para mim", ela disse. "Mas, será que é apropriado mencionar meu nome entre outros jornalistas que sofreram devido a seu trabalho?"

    Ela soltou um suspiro e então respondeu, como se estivesse pensando em voz alta.

    "Sei que se eu não fosse jornalista, se eu não tivesse meus programas, não tivesse feito entrevistas, se eu não fosse quem sou, ninguém teria uma razão para tentar me matar. Portanto, sei que o atentado contra mim foi ligado ao meu trabalho."

    Ela espera que a atenção da mídia se volte à integridade física de outros jornalistas na Rússia, citando um caso no ano passado em que vários repórteres na Inguchétia foram espancados com selvageria e sua van foi incendiada. Os agressores deles não foram pegos.

    "Enquanto as autoridades russas não quiserem resolver esse problema, o problema não vai desaparecer, não importa o que digam celebridades ou estrelas", ela comentou.

    Ao mesmo tempo, a intervenção de figuras de destaque no governo russo pode ter salvo a vida de Felgengauer. O gabinete do prefeito de Moscou enviou uma ambulância à emissora Eco de Moscou com urgência e liberou sua internação em um dos melhores hospitais da cidade. Outro "representante governamental de alto escalão", que a jornalista se negou a identificar, "ofereceu seu apoio com o tratamento médico".

    A televisão estatal pode ter exercido um papel no ataque. Antes de Boris Grits ter invadido o estúdio da rádio, Felgengauer foi citada com destaque em um documentário do canal Rossiya-24 que a acusou de aceitar dinheiro do Departamento de Estado.

    "Gargalhamos quando assistimos ao documentário", disse Felgengauer. "Não dá para levar esse pessoal a sério. Não como provocação nem como mais nada. Foi um trabalho nem um pouco profissional."

    A Rússia está mergulhada em uma crise de "notícias falsas" há muito mais tempo que os Estados Unidos. A sociedade está dividida entre as pessoas que assistem à televisão, em que canais federais apoiam fortemente a política do Kremlin, e as que buscam outras fontes de notícias. Os casos de agressão a jornalistas e a pessoas com pontos de vista opostos vêm aumentando. Para Felgengauer, basta assistir aos programas de entrevistas sobre política.

    "Quando as pessoas assistem a um programa político onde você pode atacar seu adversário, pode espancá-lo e isso é mostrado na televisão, acham que podem fazer a mesma coisa na vida real", ela explicou. "Esse é um tema realmente doloroso para mim."

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