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    Enquanto Venezuela entra em colapso, as crianças estão morrendo de fome

    MEREDITH KOHUT
    ISAYEN HERRERA
    DO "NEW YORK TIMES", EM SAN CASIMIRO (VENEZUELA)

    19/12/2017 07h00

    Kenyerber Aquino Merchán tinha quase 1 ano e meio quando morreu de fome.

    Seu pai saiu antes do amanhecer para trazê-lo do hospital. Ele levou o corpo esquelético do menino para a cozinha e o entregou a um profissional que atende em casa as famílias venezuelanas que não têm dinheiro para funerais.

    A coluna e as costelas se projetavam quando as substâncias de embalsamamento foram injetadas. As tias afastavam os primos curiosos, amigos chegavam com flores dos morros próximos e parentes cortaram um par de asas de papelão de uma das caixas de alimentos distribuídas pelo governo, das quais as famílias dependem cada vez mais, devido à escassez de comida e ao disparo dos preços no país.

    Elas delicadamente colocaram as asas sobre o caixão de Kenyerber para ajudar sua alma a chegar ao paraíso —uma tradição quando morre um bebê na Venezuela.

    Meridith Kohut/The New York Times
    Parentes colocam asas no caixão de Kenyerber Aquino, que morreu aos 17 meses de desnutrição
    Parentes colocam asas no caixão de Kenyerber Aquino, que morreu aos 17 meses de desnutrição

    Quando o corpo da criança finalmente ficou pronto para ser velado, seu pai, Carlos Aquino, um trabalhador da construção de 37 anos, começou a chorar descontroladamente. "Como isso aconteceu?", ele chorava e segurava o caixão, falando delicadamente como que para confortar o filho. "Seu papai nunca mais o verá."

    A fome persegue a Venezuela há anos. Agora está matando as crianças do país em um ritmo alarmante, segundo médicos dos hospitais públicos do país.

    A Venezuela vem estremecendo desde que sua economia começou a despencar em 2014. Greves e protestos pela falta de alimentos acessíveis, as filas penosas para comprar produtos básicos, soldados postados diante de padarias e multidões iradas saqueando os mercados abalaram as cidades, oferecendo uma imagem reveladora da profundidade da crise.

    Mas as mortes por desnutrição continuaram sendo um segredo bem guardado pelo governo venezuelano. Em uma investigação de cinco meses feita por "The New York Times", médicos de 21 hospitais públicos em 17 Estados do país disseram que seus prontos-socorros estão lotados de crianças com desnutrição grave —estado que raramente encontravam antes do início da crise econômica.

    "Estão chegando crianças em condições de desnutrição muito precárias", disse o doutor Huníades Urbina Medina, presidente da Sociedade Venezuelana de Pediatria.

    Ele acrescentou que os médicos estão vendo até o tipo de desnutrição extrema que se encontram comumente nos campos de refugiados —casos que eram altamente incomuns na Venezuela, rica em petróleo, antes que sua economia desmoronasse.

    Para muitas famílias de baixa renda, a crise redesenhou completamente a paisagem social. Pais como os de Kenyerber passam dias sem comer, encolhendo para pesos que seriam normais em crianças.

    As mulheres fazem fila em clínicas de esterilização para evitar filhos que não podem alimentar. Meninos saem de casa e se unem a gangues de rua para procurar restos, seus corpos mostrando sinais de brigas de faca com os concorrentes.

    Multidões de adultos atacam as latas de lixo depois que os restaurantes fecham. Bebês morrem porque é difícil encontrar ou pagar por alimentos infantis industrializados, mesmo nos prontos-socorros.

    "Às vezes eles morrem nos seus braços de simples desidratação", disse a doutora Milagros Hernández, no PS de um hospital infantil na cidade de Barquisimeto, no norte do país, comentando que o hospital começou a ter um aumento de pacientes desnutridos no final de 2016.

    "Mas em 2017 o aumento foi terrível", acrescentou. "As crianças chegam com o mesmo peso e altura de um recém-nascido."

    MAIS QUE O TRIPLO

    Antes que a economia da Venezuela entrasse em queda vertiginosa, dizem os médicos, quase todos os casos de desnutrição que apareciam nos hospitais públicos eram por descuido ou abuso dos pais.

    Mas quando a crise econômica começou a se agravar, em 2015 e 2016, o número de casos de desnutrição severa no principal centro pediátrico do país, na capital, Caracas, mais que triplicou, dizem os médicos. Este ano parece ainda pior.

    Em muitos países, a desnutrição extrema "pode ser causada quando há uma guerra, seca, algum tipo de catástrofe ou um terremoto", disse a doutora Ingrid Soto de Sanabria, chefe do departamento de nutrição, crescimento e desenvolvimento do hospital. "Mas em nosso país está diretamente relacionada à escassez e à inflação."

    Meridith Kohut/The New York Times
    Nerio Parra e Abigail Torres visitam os túmulos de seus dois filhos que morreram de desnutrição
    Nerio Parra e Abigail Torres visitam os túmulos de seus dois filhos que morreram de desnutrição

    O governo venezuelano tentou encobrir a extensão da crise aplicando um blecaute quase total ás estatísticas de saúde e criando uma cultura em que os médicos muitas vezes têm medo de registrar casos e mortes que possam ser associados a falhas do governo.

    Mas as estatísticas publicadas são assustadoras. No relatório anual do Ministério da Saúde de 2015, a taxa de mortalidade de crianças com menos de 4 semanas aumentou cem vezes, de 0,02% em 2012 para mais de 2%. A mortalidade materna aumentou quase cinco vezes no mesmo período.

    Durante quase dois anos, o governo não publicou um único boletim epidemiológico com estatísticas como mortalidade infantil. Em abril, um link apareceu de repente no site do ministério levando aos boletins não publicados, que mostravam que 11.446 crianças de menos de 1 ano tinham morrido em 2016 —um aumento de 30% em um ano—, conforme a crise econômica se acelerou.

    As novas revelações ganharam manchetes no país e no exterior antes de o governo declarar que o site foi invadido, e os relatórios foram rapidamente retirados. Nenhum relatório foi divulgado desde então.

    Os médicos são censurados nos hospitais, muitas vezes advertidos para não incluir desnutrição nos registros médicos de crianças. "Em alguns hospitais públicos, o diagnóstico clínico de desnutrição foi proibido", disse Huníades Urbina.

    Mas os médicos entrevistados pelo "Times" em nove dos 21 hospitais públicos disseram que mantêm uma contagem parcial. Eles encontraram quase 2.800 casos de desnutrição infantil só no último ano, entre crianças famintas regularmente levadas aos pronto-socorros. Quase 400 das crianças morreram, disseram os médicos.

    "Nunca em minha vida vi tantas crianças famintas", disse a doutora Livia Machado, pediatra que dá consultas grátis em seu consultório a crianças que foram hospitalizadas no Hospital Doutor Domingo Luciani, em Caracas.

    O hospital é um dos poucos que aceitam crianças desnutridas para tratamento. Outros hospitais muitas vezes as recusam, dizendo aos pais desesperados que não têm leitos suficientes ou suprimentos médicos para tratar seus filhos. Quase todos os hospitais venezuelanos relatam falta de suprimentos básicos como alimento industrializado para bebês.

    O presidente Nicolás Maduro reconheceu que as pessoas estão famintas na Venezuela, mas se recusa a aceitar ajuda internacional, muitas vezes dizendo que os problemas econômicos da Venezuela são causados por adversários estrangeiros como os EUA, que segundo ele travam uma guerra econômica contra seu país.

    A Venezuela tem as maiores reservas de petróleo comprovadas no mundo. Mas muitos economistas afirmam que anos de má administração armaram o cenário para o atual desastre.

    O prejuízo foi mascarado quando os preços do petróleo estavam altos, dando ao governo amplos recursos. Mas quando o preço do petróleo começou a baixar acentuadamente no final de 2014 a escassez se tornou comum e o preço dos alimentos disparou.

    A inflação poderá chegar a 2.300% no próximo ano, segundo advertiu o Fundo Monetário Internacional em outubro.

    O Ministério da Saúde e o Instituto Nacional de Nutrição não responderam a pedidos de entrevistas ou relatórios oficiais de saúde com estatísticas de desnutrição. Mas a oposição política do país, que foi alijada do poder pelo governo, continua dando o alarme.

    "Nossa população está morrendo de fome", disse aos legisladores em novembro o congressista Luis Florido, líder da Comissão de Política Externa da Assembleia Nacional. Ele chamou a crise de "uma emergência humanitária que todos os venezuelanos estão vivendo".

    Meridith Kohut/The New York Times
    Primos de Kenyerber Aquino olham o caixão com o corpo do menino que morreu de desnutrição
    Primos de Kenyerber Aquino olham o caixão com o corpo do menino que morreu de desnutrição

    SEM COMIDA PARA BEBÊS

    Kenyerber nasceu saudável, com quase 3 quilos. Mas sua mãe, María Carolina Merchán, 29, foi mordida por um mosquito e infectada com um caso grave de zika quando o menino tinha 3 meses. Ela teve de ser hospitalizada, e os médicos lhe disseram para deixar de amamentar por causa das sérias complicações de sua doença.

    Incapaz de encontrar ou de poder pagar por comida para bebês, a família improvisou com o que pôde encontrar: mamadeiras de creme de arroz ou de amido de milho misturados com leite integral. Isso não dava a Kenyerber os nutrientes de que precisava.

    Aos 9 meses, o pai o encontrou imóvel na cama, com sangue escorrendo pelo nariz. Ele o levou correndo ao pronto-socorro pediátrico do Hospital Dr. Domingo Luciani, onde os pacientes e leitos transbordam dos quartos para os corredores sujos vigiados por soldados armados.

    Kleiver Enrique Hernández, de 3 meses, estava sendo tratado de desnutrição severa a alguns leitos do de Kenyerber. Ele também nasceu saudável —mais de 4 quilos—, mas sua mãe, Kelly Hernández, não podia amamentá-lo.

    Em buscas nos estoques da Locatel, uma das maiores distribuidoras farmacêuticas da Venezuela, o "Times" encontrou apenas um de seus 64 locais no país onde havia o preparado para bebês que os médicos prescreveram para Kleiver.

    É improvável que Hernández pudesse pagar por ele, de qualquer modo. A hiperinflação corroeu os salários pagos em moeda local, o bolívar, para uma fração do que eles valiam dois anos atrás. O valor do alimento necessário para Kleiver durante um mês era mais que o dobro do salário mensal de Hernández como trabalhadora agrícola.

    Eles esperaram ansiosamente que o estado de saúde do menino melhorasse, dormindo em uma cadeira ao lado dele ou no pátio lá fora, em alerta para buscar qualquer suprimento que os médicos pedissem.

    Após 20 dias no hospital, eles se tornaram uma daquelas famílias que tinham visto com horror. Uma equipe de médicos trabalhou durante horas para ajudar Kleiver, cobrindo-o de hematomas e sangue enquanto tentavam inserir um tubo em seu pescoço.

    Quando os médicos finalmente aceitaram que não poderiam salvá-lo, seu corpo inerte parecia brutalmente espancado. Kleiver sofreu uma morte extremamente dolorosa, disseram os médicos —que eles poderiam ter evitado se houvesse o alimento infantil.

    A desnutrição aguda severa é ao mesmo tempo evidente e extremamente complexa. Mesmo quando os médicos a registram para um paciente, não é necessariamente a causa da morte oficial.

    A desnutrição aguda pode provocar uma série de patologias no corpo humano, levando à morte por falência respiratória, infecção ou outros problemas. Mas no caso de Kenyerber e Kleiver ocorreu uma rara situação na Venezuela: a desnutrição severa foi registrada como causa da morte em seus atestados de óbito.

    Mais de cem amigos e parentes vieram ao velório durante a noite toda na casa da família de Kleiver. Suas tias e primos penduraram grandes cartazes decorados com desenhos e mensagens coloridos. Kleiver estava deitado sob eles, em um pequeno caixão branco, sobre asas de papel.

    Apenas três meses antes, a família tinha colorido desenhos e pendurado nas paredes para comemorar o aniversário dele. Um enfeite, recortado em forma de balão, ainda estava acima da cama na noite do velório. "Bem-vindo Kleiver Enrique, nós o amamos muito", dizia.

    Depois que o dia nasceu, o bairro realizou um grande cortejo fúnebre até o cemitério. Hernández desmaiou sobre uma laje próxima, soluçando incontrolavelmente. Dominada pela culpa de não poder amamentá-lo ou encontrar o alimento adequado para ele, a mãe gritava sem parar: "Eu sou uma mãe terrível? Por favor, digam-me!"

    Meridith Kohut/The New York Times
    A médica Milagros Hernández segura Esteban Granadillo, internado aos 18 dias de nascimento
    A médica Milagros Hernández segura Esteban Granadillo, internado aos 18 dias de nascimento

    IMPOTENTE E INDIGNADA

    Em Barquisimeto, Milagros Hernández correu para o pronto-socorro, gritando: "Estou entrando com um bebê de 18 dias. Ele foi alimentado com chá de erva-doce, leite de vaca e às vezes amamentado por uma vizinha. Ele está mal!"

    Os médicos e enfermeiras do Hospital Universitário de Pediatria Dr. Agustín Zubillaga trabalharam depressa para avaliar o bebê, Esteban Granadillo. Ele pesava 2,1 kg e parecia assustado, com os olhos vazios fixos nos médicos fora das paredes de plástico da incubadora.

    "Digam-me o que vocês lhe deram para comer", perguntou Hernández à tia-avó do menino, María Peraza, que o havia levado ao hospital. "O estômago desta criança foi destruído, e talvez o fígado também, pelo que vocês lhe deram para comer!"

    As crianças que sofrem de desnutrição ocupavam quatro dos 12 leitos do pronto-socorro pediátrico naquele dia de agosto. Os médicos disseram que recebiam casos de desnutrição quase todos os dias —uma raridade antes que a crise começasse a piorar, há dois anos.

    Mas só uma fração dos remédios de que elas precisam está disponível. Em junho, o diretor do hospital na época, doutor Jorge Gaiti, disse que solicitou 193 medicamentos necessários à agência do governo responsável por distribuí-los aos hospitais públicos. Só quatro foram entregues, segundo relatórios visíveis no computador dele. O hospital não tem os mais básicos suprimentos médicos, como sabão, seringas, gaze, fraldas e luvas de borracha.

    Os enfermeiros mandam os pacientes embora com listas de artigos para procurar em farmácias ou comprar no mercado negro que funciona ao redor do hospital, vendendo suprimentos difíceis de encontrar por preços exorbitantes.

    Hernández disse que se sentiu indignada e impotente como médica, enquanto crianças morriam desnecessariamente em sua ala. "É injusto", disse ela.

    A mãe de Esteban era solteira, deficiente e incapaz de amamentá-lo, disse sua tia-avó. Em desespero, os parentes pediram a uma vizinha que tinha um filho pequeno para amamentá-lo. A família também lhe deu mamadeiras de leite ou chá de camomila e de erva-doce para encher o estômago.

    "Não podíamos encontrar o preparado em lugar nenhum", disse Peraza, a tia-avó, admitindo saber que o alimento poderia prejudicar o bebê. "Sim, era ruim, mas eu lhe digo —se não tivéssemos feito isso ele já teria morrido."

    Peraza ficou no hospital ao lado da incubadora de Esteban durante dias, afagando seu estômago através das aberturas e sussurrando para ele. O bebê passou semanas entrando e saindo do hospital, e morreu em 8 de outubro.

    PROCURANDO NO LIXO

    Oriana Caraballo, 29, esperou na fila durante horas com os três filhos —Brayner, 8; Rayman, 6; e Sofia, 22 meses— para entrar em uma cozinha popular lotada, dirigida por uma igreja católica em Los Teques. Além de água, eles não tinham ingerido nada em três dias.

    Antes da crise, Caraballo sustentava os filhos com o salário de seu emprego em um restaurante. Agora ela chorava enquanto dava colheradas de sopa para Sofia —e contava como as crianças tinham impedido sua tentativa de suicídio.

    Caraballo não suportava a dor de ver os filhos famintos. Ela disse que os levou para fora da casa, enquanto a bebê dormia, então voltou para dentro e fechou a porta. Ela pendurou um cabo e o enrolou no pescoço, disse. Quando estava prestes a se enforcar, ouviu a filha começar a chorar.

    "Eu ouvi uma voz que dizia: 'Faça isso, faça. Faça'", disse ela. "Então em meu outro ouvido escutei 'Não faça, não faça —cuide dos seus filhos'."

    O filho a chamou, dizendo-lhe para abrir a porta. Ela foi dominada pela culpa e decidiu não se matar. Seu filho mais velho tinha desmaiado várias vezes na escola, por estar sem o desjejum ou o jantar da noite anterior. Ele chora todas as noites de fome e, aos 8 anos, pede que a mãe o deixe trabalhar para comprar comida para a família.

    Um relatório recente da ONU e da Organização Pan-Americana de Saúde revelou que 1,3 milhão de pessoas que costumavam se alimentar na Venezuela tiveram dificuldades para fazê-lo desde que a crise econômica começou há três anos.

    Em "sopões" por todo o país visitados pelo "Times", muitos pais que traziam os filhos tinham empregos em tempo integral. Mas a hiperinflação tinha destruído seus salários e as poupanças.

    Uma pesquisa de 2016 de três universidades venezuelanas concluiu que 9 em cada 10 residências haviam se tornado "inseguras" do ponto de vista alimentar na Venezuela.

    O grupo de ajuda católico Cáritas vem pesando e medindo grupos de crianças com menos de 5 anos em comunidades trabalhadoras em vários Estados desde o ano passado. Cinquenta e quatro por cento das crianças neles sofrem algum tipo de desnutrição, segundo o estudo.

    RECORRENDO AS RUAS OU À ESTERILIZAÇÃO

    Em Caracas, dois irmãos —José Luis Armas, 11, e Luis Armas, 9— disseram que tinham fugido de casa, onde não havia o suficiente para comer. Agora eles vivem nas ruas com outros meninos sem teto, em bandos de rua que brigam com facas para expandir ou defender seus territórios e controlar áreas para mendigar ou procurar recicláveis no lixo.

    Vários de seus amigos foram mortos, disseram eles. Luis levantou a camisa para mostrar um grande corte na barriga —resultado, segundo disse, de um ataque a machado por um membro de outro bando. O ataque quase o matou, disse.

    Eles afirmam preferir a vida nas ruas, apesar do perigo, porque comem melhor do que se morassem em casa com suas famílias. Passam os dias mendigando, buscando alimentos descartados e recicláveis, tomando banho em fontes públicas, escondendo seus pertences em árvores e bocas-de-lobo, enquanto evitam constantemente a polícia e bandos rivais.

    Nelson Villasmil, um assistente social do governo da capital, disse que antes da crise a maioria das crianças sem teto que ele encontrava morava nas ruas por causa de negligência ou abuso dos pais. Mas agora, quando ele as entrevista, segundo disse, muitas vezes lhe contam que deixaram suas casas porque não havia comida.

    "O que eles não podem encontrar em casa, vão procurar nas ruas", disse Villasmil.

    O peso de criar filhos na Venezuela pode ser tão grande hoje em dia que muitas mulheres estão optando pela esterilização. Pouco após o amanhecer num sábado de julho, 21 jovens vestindo aventais cirúrgicos esperavam para ser esterilizadas durante um evento gratuito no Hospital Estatal José Gregorio Hernández, em um bairro de trabalhadores na capital.

    O hospital diz que esterilizou mais de 300 mulheres por esse programa. Naquele sábado, as 21 mulheres, que tinham entre 25 e 32 anos, disseram já ter filhos e que queriam ser esterilizadas porque a crise econômica tornou difícil demais criá-los. Todas temiam engravidar de novo, citando a falta de alimentos e suprimentos como fraldas, preparações, leite e remédios.

    Meridith Kohut/The New York Times
    Familiares de Kleiver Enrique, que morreu de desnutrição aos três meses, levam o caixão ao cemitério
    Familiares de Kleiver Enrique, que morreu de desnutrição aos três meses, levam o caixão ao cemitério

    JEJUM PARA DAR AOS FILHOS

    Seis semanas depois de recortar asas de anjo da caixa de ração do governo para enterrar Kenyerber, sua família ainda lutava com a fome.

    Sua mãe, María Carolina Merchán, disse que emagreceu para 30 quilos por ficar sem comer para que seus quatro filhos tivessem um pouco mais. Assistentes sociais do governo disseram que ela estava gravemente desnutrida, assim como sua própria mãe e sua filha de 6 anos, Marianyerlis. A família já passou cinco dias sem ingerir nada além de água.

    Marianyerlis segue Merchán durante horas, chorando e soluçando, suplicando por comida. Merchán olha para o chão enquanto lágrimas rolam pelo rosto da menina. "Mamãe, estou com fome!", grita ela.

    Seu peso varia entre 9 e 13 quilos, dependendo de quanta comida ela consegue. Os Centros para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA lista as meninas de 6 anos com menos de 15 quilos entre os 20% mais baixos. Marianyerlis recentemente desmaiou depois de passar dois dias sem comer.

    A família fez sua casa com parentes em um projeto habitacional do governo abandonado, que não tem água encanada ou esgoto, e improvisou a eletricidade. É desconfortável, mas toda a sua renda deve ser gasta em alimentos.

    Retratos de bebê das crianças, um de seus pertences mais apreciados, estão pendurados da parede. A única comida em toda a casa é meio saco de sal e uma laranja.

    "Isto é um pesadelo", disse a irmã de Merchán, Andreína del Valle Merchán, 25, contando que as crianças começam a vomitar, a suar e ficar inativas depois de dias sem comer. Sua filha de 5 anos perdeu 5 quilos neste ano e agora pesa menos de 8, disse ela.

    O sofrimento das famílias venezuelanas deverá piorar em 2018. Além da advertência do FMI de que a inflação poderá ultrapassar 2.300%, observadores temem que o governo de esquerda continue a recusar ajuda internacional por motivos políticos.

    "Se eles aceitarem a ajuda, admitirão que há uma crise humanitária, e oficialmente reconhecerão que sua população está vulnerável e o quanto suas políticas falharam", disse Susana Raffalli, especialista em emergências alimentares que dá consultoria à Caritas na Venezuela.

    O governo venezuelano usou alimentos para manter os socialistas no poder, dizem os críticos. Antes das eleições recentes, as pessoas que viviam em projetos habitacionais do governo disseram que foram visitadas por representantes dos conselhos comunitários socialistas locais —grupos ligados ao governo que organizam a entrega das caixas de comida barata— e ameaçaram ser cortados se não votassem no governo.

    Os parentes de Kenyerber não esperam que a crise econômica melhore a qualquer momento. Eles temem que outra criança da família possa morrer.

    "Eu me preocupo com isso dia e noite", disse sua tia, Andreína.

    Tradução de LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

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