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    Feminismo floresce em cidade que é berço do Boko Haram na Nigéria

    DIONNE SEARCEY
    DO "NEW YORK TIMES", EM MAIDUGURI (NIGÉRIA)

    21/12/2017 07h00

    O Boko Haram sequestra meninas e mulheres jovens, as converte em escravas sexuais e as passa de mão em mão entre seus combatentes como se fossem prêmios. Obriga as mulheres a travar guerra, prende bombas suicidas a seus corpos e as manda atacar na entrada da Universidade de Maiduguri.

    Mas no campus, justamente fora do alcance dos militantes, o tema discutido num grande salão nobre não poderia ser mais diferente: o feminismo radical. O fim do patriarcado. Maridos que lavam a louça.

    "Quero um homem que prepare meu café da manhã", disse a estudante Rabi Isa, 25, levantando-se para falar aos presentes. "Um homem que me ajude na cozinha e saiba fazer a feira."

    Seus colegas na aula de igualdade de gêneros aplaudiram.

    Boa parte do mundo conhece a cidade de Maiduguri, na Nigéria, quase apenas como berço do Boko Haram, organização extremista que mata livremente e trata mulheres e meninas como objetos de sua propriedade, forçadas a cozinhar, fazer a faxina, gerar filhos e morrer quando recebem ordens para isso.

    Desde que as autoridades mataram o líder espiritual do grupo e arrasaram sua sede em Maiduguri, quase uma década atrás, o Boko Haram vem fustigando a cidade, invadindo-a com seus combatentes, explodindo bombas em feiras livres, enchendo suas ruas de famílias desabrigadas que fogem de sua ira e atacando a universidade pelo menos oito vezes apenas neste ano, inspirado por seu grito de guerra "a educação ocidental é proibida".

    Mas existe uma Maiduguri completamente diferente, que ajuda a lançar luz sobre a batalha ideológica que está sendo travada no norte da Nigéria.

    Esta é uma capital regional conhecida por acolher pessoas de todas as religiões e etnias, uma cidade universitária famosa há anos por suas festas, e uma cidade vibrante, dotada de uma cultura jovem ousada e frequentemente muito aberta, algo que oito anos de guerra parecem não ter conseguido extinguir.

    Na verdade, a guerra às vezes até a incentiva.

    FESTAS

    Não eram nem 20h de um dia de semana e o baile já começara. O DJ tocava ritmos afro. Casais coladinhos se abraçavam em cantos escuros. E então, justamente quando a festa começava a esquentar, as portas do hotel foram fechadas de repente, encerrando os presentes dentro do recinto.

    Era o início oficial da festa, que iria varar a noite.

    Em uma zona de guerra diferente, um toque de recolher como o que vigora em Maiduguri todas as noites para proteger a população contra o Boko Haram poderia sufocar qualquer esperança de uma vida social.

    Aqui, entretanto, o toque de recolher levou as pessoas a estender as festas a portas fechadas, em locais protegidos. Em vez de voltarem para casa, os jovens acabam esticando a balada até o toque de recolher acabar, no início da manhã seguinte.

    Quando as festas ficam populares demais e viram alvos potenciais dos terroristas, são fechadas e então ressurgem em outro local.

    Na festa naquela noite, luzes eram refletidas de uma piscina com pétalas de flores espalhadas em sua superfície. Ninguém estava falando da guerra, das centenas ou milhares de mulheres sequestradas pelo Boko Haram, dos milhões de pessoas deslocadas pela violência e que enfrentam fome e desespero. O assunto em pauta era amor, sexo e a liberação feminina.

    "Eles querem lhe testar para saber se você faz muito bem", disse Rose Williams, 27 anos, falando abertamente sobre sexo pré-conjugal, algo que a geração de seus pais considera tabu. "E eu faço."

    Ela e suas amigas estavam olhando homens e mulheres -algumas destas usando lenços coloridos na cabeça e uma com um bebê amarrado às costas —dançando com os braços para o alto. Elas haviam vindo para curtir uma noite entre amigas, não acompanhadas por seus namorados.

    "De repente conheço um namorado novo hoje", disse Williams.

    Blessing Christopher tem 21 anos e estuda numa escola de esteticistas. Ela estava na pista de dança festejando sua liberdade recente, depois de terminar com seu namorado. Estava feliz por estar livre, leve e solta e ansiosa por voltar sua atenção para sua profissão, e não para um homem.

    "Não estou procurando um namorado", ela disse. "O que eu quero achar é um emprego."

    EXTREMISMO

    A guerra contra o Boko Haram vem sendo, sob muitos aspectos, um conflito entre esperanças e expectativas completamente divergentes na sociedade nigeriana. Os militantes islâmicos que lançaram uma rebelião contra o Estado nigeriano pensavam que poderiam acabar com a corrupção no governo, adotando uma versão severa do islã.

    Os hábitos e costumes ocidentais, especialmente no campo da educação, eram considerados pecaminosos. Os imãs em Maiduguri que criticavam os militantes e sua interpretação intransigente da religião foram assassinados.

    O xeque Abubakar Gonimi, imã principal da mesquita central de Bolori, em Maiduguri, disse que a ascensão do Boko Haram "suscitou muita confusão na cidade em torno do que é o islã legítimo. Graças a Deus nós conhecemos nossa religião, e o que eles fazem não tem nada a ver com o islã."

    Depois de os militantes serem expulsos da cidade, os imãs passaram a falar mais abertamente contra as filosofias e práticas extremistas do Boko Haram. Com o tempo, a vida começou a ficar mais livre outra vez, e os jovens começaram a encontrar lugares seguros para se divertir.

    Apesar de toda a liberdade recente, muitos moradores da cidade dizem que a tenacidade e a violência esmagadora do Boko Haram conseguiram sufocar muito do espírito tradicional de Maiduguri.

    "A guerra destruiu a base de nossa sociedade", comentou Zannah Mustapha, advogado destacado que já atuou como mediador entre o governo e membros do Boko Haram. "Éramos conhecidos por nosso espírito pacífico."

    Durante anos os moradores da cidade abandonaram as festas tradicionais de casamento que se estendiam por sete dias, com tambores, dança e banquetes de arroz frito. Bares e lojas deixaram de vender bebidas alcoólicas.

    Os concertos musicais, que antes atraíam artistas de tão longe quanto a Etiópia, acabaram. Uma trupe de dança da cidade parou de fazer seus ensaios diários num velho anfiteatro. Os dançarinos passaram a ensaiar em casa, com as janelas fechadas.

    Antes do início da guerra, Mohammed Bukar e seus amigos frequentavam uma discoteca local onde dançavam ao som de artistas americanos como Bobby Brown e Lisa Lisa & Cult Jam.

    "Passei muito tempo aperfeiçoando a dança de Michael Jackson em 'Thriller'", contou Bukar.

    Então, uma noite na fase inicial da guerra, o Boko Haram invadiu a discoteca e matou todos os presentes. O estabelecimento foi fechado. Enquanto os combates continuavam em Maiduguri, outros bares e boates também fecharam as portas.

    RETOMADA

    Nos últimos dois anos, porém, com o Exército avançando na luta contra os militantes, a cidade vem pouco a pouco recobrando um clima de segurança. As pessoas estão recuperando sua vida social aos poucos, conforme a situação de segurança o permite, e manifestações da cultura que Bukar antes apreciava estão ressurgindo de maneiras inesperadas.

    Nas mesmas ruas em que policiais nervosos ficam em alerta, atentos para evitar atentados suicidas, um policial do trânsito emula Michael Jackson enquanto faz seu trabalho, atravessando o cruzamento com passos da dança "moonwalk" e direcionando os carros com uma luva branca em uma das mãos.

    A segurança ainda está fortemente presente em muitos dos locais frequentados por namorados. Um restaurante chinês afastado da rua, protegido por portões altos de ferro e um detector de metal, oferece um espaço onde casais fumam narguilés e consomem rolinhos primavera.

    Os veículos são revistados à procura de explosivos antes de entrarem nos estacionamentos de hotéis que servem bebida alcoólica, apesar de o álcool ser proibido em boa parte da cidade.

    Alguns casais dizem que ainda escondem o fato de que têm relações sexuais de seus pais, que são antiquados e não entenderiam, apesar de Maiduguri ser uma cidade cosmopolita onde os televisores ficam sintonizados na CNN e canções de Adele são usadas como toque de smartphones.

    Muitas das opiniões manifestadas aqui parecem vir de um planeta diferente daquele do Boko Haram, cujos líderes pregam que as mulheres podem chegar ao paraíso matando-se com explosivos ao lado de soldados em postos de controle.

    No campus da universidade, o professor Raphael AuduAudole, usando mocassins de imitação de crocodilo e carregando um laptop debaixo do braço, subiu a um pódio para explicar as raízes da opressão exercida pelos homens.

    "A sociedade é construída de modo a favorecer os interesses dos homens, certo?", ele perguntou à classe.

    "Sim", respondeu um coro de 150 jovens, homens e mulheres.

    "O homem tenta dominar", disse o professor. "Vocês entendem?"

    "Entendemos", respondem os alunos.

    "As mulheres são marginalizadas, oprimidas e agredidas. Os homens assumiram o papel da dominação e da força nas relações familiares. É um problema grave na sociedade, e precisamos fazer algo para mudar essa situação."

    Tradução de CLARA ALLAIN

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