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    Carlos Bastide Horbach: Doação com encargo e revogação

    04/04/2014 03h00

    Não são poucos os museus ao redor do mundo formados pela iniciativa de indivíduos que, por meio de doações ou legados, abriram mão de patrimônio em prol da sociedade. O Frick Collection de Nova York é um exemplo disso, expondo as obras de arte de seu criador, Henry Clay Frick, na mansão da 5ª Avenida que foi lar do industrial.

    Essas doações ou legados voltados a satisfazer interesses coletivos não raro vêm acompanhados de imposições aos donatários ou legatários para garantir que os bens transferidos sejam fielmente empregados no cumprimento dos desígnios altruístas do doador ou testador.

    O descumprimento desses encargos, na doação, acarreta sua revogação (art. 555 do Código Civil brasileiro), retornando o bem ao patrimônio do doador/herdeiros.

    Imagine se hoje, quase cem anos após a morte de Henry Frick, os administradores decidissem alugar a mansão que abriga o museu, confinando parte da exposição à área que fora, no passado, a garagem da residência. Ante essa hipótese, é evidente que ninguém questionaria a ocorrência de uma violação ao que foi determinado por Frick quando instituiu o museu, ainda que parte do acervo continuasse exposta na antiga garagem e que as obrigações tenham sido estipuladas há quase cem anos. Seria patente o descumprimento de encargos, a partir do qual os administradores dos bens poderiam ser judicialmente questionados e compelidos a cumpri-los ou a devolver os bens.

    Assim sendo, embora a situação acima exposta seja percebida como irregular por qualquer pessoa de bom senso, causa estranheza o espanto com que foi recebida por alguns a pretensão da família Guinle em relação à área que hoje abriga o Aeroporto Internacional de Guarulhos, questão sobre a qual tive oportunidade de exarar parecer.

    Igualmente movidos por ideais altruístas em tempos de guerra, os Guinle doaram um terreno em 1940 à União fixando como encargos a construção de um aeródromo militar, sob administração de autoridade militar e exploração pelo poder público em prol da coletividade brasileira. As obrigações foram descumpridas pela União, seja na transferência da gestão da área para estrutura administrativa desvinculada da autoridade militar, o que se deu com a criação da Secretaria de Aviação Civil, em março de 2011, seja na concessão da exploração do aeroporto à iniciativa privada, em fevereiro de 2012.

    Tal qual no exemplo antes apresentado, a violação do estipulado pelos doadores é evidente no caso do aeroporto de Guarulhos, igualmente abrindo-se a possibilidade de impugnação e de eventual revogação da doação. Em nada importa, para tanto, que ínfima área do terreno doado ainda abrigue a Base Aérea de São Paulo e que a doação tenha se efetivado há mais de 70 anos, já que o prazo para o questionamento judicial se inicia com o descumprimento do encargo.

    Desse modo, a pretensão dos Guinle frente à União tem real viabilidade jurídica, constituindo-se em notável oportunidade para que se valorize o cumprimento dos encargos nas doações, o que somente reforçará esse relevante instituto, tão pouco utilizado no Brasil em favor da coletividade.

    CARLOS BASTIDE HORBACH, 39, advogado, é professor doutor da Faculdade de Direito da USP e do Centro Universitário de Brasília

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